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Os Incompetentes para a Vida

“O intervalo que me separa de meu cadáver é uma ferida para mim; todavia,
aspiro em vão às seduções da tumba: não podendo separar-me de nada, nem
cessar de palpitar, tudo em mim assegura-me que os vermes permaneceriam
inativos sobre meus instintos. Tão incompetente na vida como na morte, odeio-me,
e neste ódio sonho com outra vida, com outra morte. E por haver querido ser
um sábio como nunca houve outro, sou apenas um louco entre os loucos…”                                                                                                                  [Breviário de Decomposição, E. M. Cioran]

“Afinal, isto bem me contentaria se eu conseguisse persuadir-me que esta
teoria não é o que é, um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha
inteligência, quase para ela não perceber que, no fundo, não há senão a minha
timidez, a minha incompetência para a vida.”                                                                                                                                                              [Livro do Desassossego, Fernando Pessoa]

Contemporâneos por estarem igualmente fora do tempo, Cioran e Fernando Pessoa eram tipos solitários, viviam em mansardas, caminhavam sem rumo pela cidade ou pelo campo; eram misantropos, sim, mas não pessimistas como podem levar alguns a crer. “Eu não sou pessimista, sou triste.” diria Fernando Pessoa… ou Cioran? A escrita de ambos é tão única e tão semelhantes entre si são seus escritos que um parece ser o comentador da obra do outro. O tédio, a solidão, o vazio, a tristeza, o desespero, a morte, a ilusão, o sonho, o tempo e a eternidade, os santos, Deus e o diabo são temas recorrentemente assediados por estes dois filósofos órfãos de qualquer Verdade/Doutrina/Sistema… enfim, carentes de uma qualquer forma sólida de consolação.

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CHAMADA para Antologia de TERROR PARAENSE

Uma das mais recentes editoras que surgiram no cena paraense – a Pará.grafo editora – está trazendo uma chamada para a inscrição de material inédito no gênero conto-terror. Uma ótima oportunidade para jovens (ou nem tanto assim) escritores divulgarem seus trabalhos.

Texto retirado do instagram da editora:

Iniciaram as inscrições para a antologia de contos TERROR NA AMAZÔNIA. 🕷☠️👹🧟‍♀️
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Participe! As inscrições vão até o dia 20 de agosto de 2019. Veja o regulamento no site:
https://www.e-paragrafo.com.br/blog
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A Amazônia é um mundo místico e desconhecido, lar de inúmeras criaturas hostis e — dizem — sobrenaturais. Durante séculos, histórias foram contadas sobre cobras gigantes que habitam o fundo dos rios, animais selvagens que espreitam da escuridão da selva, entidades não humanas que assombram os moradores das aldeias e vilas. Figuras lendárias como Saci, Matinta Pereira, Mapinguari, Sereias e Muiraquitã estão presentes no imaginário e nos pesadelos daqueles que vivem embrenhados nesse universo.
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A antologia TERROR NA AMAZÔNIA, organizada pelo escritor e editor Girotto Brito, busca contos (inéditos!) sobrenaturais, de terror, horror cósmico e suspense, que sejam ambientados na Amazônia e/ou narrem as lendas amazônicas em suas versões mais sinistras e amedrontadoras.

 

[Uma reportagem de Baleia, a cadela]

Um breve desabafo…

Já pensaram em viver em um mundo sem palavras? Um mundo sem vírgulas ou pontos? Um mundo sem rimas ou poesias? Sem estrofres ou parágrafos? Sem capas nem lombadas? Sem escritores ou leitores?

Seria um mundo tão triste, não acha? Sem contos de fadas, sem histórias de aventura e heróis, sem palavras apaixonadas proferidas por casais em uma grande trama romântica… Tudo seria um grande e completo nada.

Me apavora sequer pensar em viver em um mundo, em que um dia, não exista mais livros nem histórias…

Que os livros e os contos existam por muito mais tempo que a humaninade. Assim os nossos sonhos e nossa imaginação permanecerão eternos nos nossos corações.

Oficina de Leitura e Escrita Criativa – Com Mayara La-Rocque

 

Nesta primeira semana do mês de junho do ano da (des)graça de doismilledezenove, a poeta e educadora Mayara La-Rocque inicia mais uma oficina voltada para uma busca/aprendizado de produções de textos literários, poéticos e patéticos (no bom e velho sentido grego). A oficina será de segunda a sexta, na parte mais aperreada da tarde. O local? A ilustríssima Casa da Linguagem, localizada na boca desdentada da avenida nazaré, é bem na esquina: ao lado da Praça da República e de fronte para uma das sobreviventes do clã Y. Yamada.

Sobre a bendita oficina (o imbróglio em si), Mayara falou (bem floreado) assim:

A Oficina de Leitura e Escrita Criativa é um laboratório que intenta mediar percursos sensíveis de leitura e diálogo acerca da linguagem e das potencialidades de manejo com a palavra poética. Com caráter de experimentação, imersão, rascunho, esboço e diário, a oficina tem como intuito provocar/pesquisar o lugar afetivo e poético de cada participante como um processo de criação onde cada um será impelido a encontrar os caminhos de sua própria escrita e autoexpressão, em consonância com as dinâmicas e vivências trocadas em grupo.

Participem, divulguem, comentem!

Espero vocês por lá! (sentado…no chão, é claro; do jeito que aqueles bancos de madeira me molestam a bunda…bem, pelo menos o jardinzinho e o coreto-anão residentes na Casa da Linguagem são bem simpáticos, sim, ao menos isto…)

Mayara La-Rocque é escritora, formada em Letras com habilitação em língua francesa pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Colaborou com a revista literária KamikASES, participou da Antologia Literária do III prêmio PROEX de Literatura da UFPA e, em 2015, ganhou a 4ª edição do mesmo prêmio, na categoria contos. Em 2016, produziu o livro artesanal “Atravessa a tua viagem” e, em 2017, publicou a plaquete literária “Uma luminária pensa no céu”, pela Editora Escriba. Atualmente, ministra cursos voltados para criação e produção literária.

Baleia, a cadela

Fumaça no Quintal [trecho de conto]

[Olá pessoal! Mando o inicio de um conto meu “Fumaça no Quintal”, escrito lá por 2017/2018. Espero que apreciem!]

 

FUMAÇA NO QUINTAL

Mais um dia canhestro arremedando os anteriores. Prometendo surpresas raquíticas e inúteis, como uma chuvinha fraca no ardor da tarde, que nem pra fazer aparecer um meio arco-íris se presta. Foi o que pensei ao despertar. Acordei devia ser umas seis horas; pelas frestas do telhado já se notava uma luz cinzenta, fria e pálida (havia outros adjetivos para a luz só que menos eloquentes e que não têm porque fazer figuração neste relato. Quer dizer… escrevi sem pensar. Isto é um relato? Não sei ao certo. Desconheço acertos. Há erros, isto sim, isto é a verdade) Mais uma hora e me levanto, pensei. Despertar adiando, eis a tragédia capenga que rasteja incessantemente pelos meus dias, como um mendigo perambulando sempre pela mesma área, no mesmo ponto.

Alguém passa/Pensando/No eterno.

Montei e desmontei esses versinhos. Não lembro onde que eu li isso, certamente sobejo de algum poeta frustrado, um desses tipos que servem pra engrossar volume de antologia literária regional. O que significava? Aí surgiu o sol dourando sem literatura, senti uma frescura nos ossos dos pés e me espichei como um gato. Não gosto de gatos, são muito indolentes pro meu gosto; entretanto, possuem uma sensualidade assustadora que me excita mais do que devia. Com cuidado, o pé procurou as sandálias pelo chão frio, se meteu debaixo da cama, vacilante, a areia fininha grudando desde cedo nos dedos, irritante! O pé esquerdo encontra a sandália do direito.

Pulei da cama, escancarei as janelas e dei uma mijada, por ali mesmo, no quintal. Formou um laguinho e as formigas, curiosas, vieram logo dar uma espiada. Averiguaram a jazida cor de amarelo-ovo-cozido, pareciam interessadas em transportar o liquido para a artéria de terra instalada na parede. Na verdade tal túnel era de propriedade dos cupins: trabalharam, projetaram e, por muitos anos, utilizaram-no para o interesse de seu povo. Até que veio a peste e dizimou tudo quanto era espécie destes nobres bichinhos da terra, desta pelo menos, e sobrevieram as formigas com discreto gesto de ocupação dos empreendimentos, que os cupins, gênios incompreendidos mesmo depois de mortos, relegaram ao quintal de casa.

É uma bela história, mas como termina? Cheguei à conclusão: história nenhuma possui desfecho; mas isso não me consola. Lentamente fui peneirando a ideia de incompletude, queria ver onde ia dar, mas o pensamento acabou adentrando num atalho obscuro. Aí a velha gritou meu nome, já tinha preparado o café. A velha. Ela é muito esquisita, coitada, parece uma meia suja esquecida num sapato velho, não vai para a igreja como todas as velhotas daqui, tampouco se dá com elas, possui até certo desprezo, sempre diz que não é nem uma galinha de cu caído pra ficar cacarejando alto em missas, cantando piedade, alteando glórias, ciscando salvação. Sua cara é tão cheia de dobras que parece a escadaria larga de algum antigo templo, oculto da vista de tudo e todos, quase não sai desta propriedade que herdou de um parente desconhecido que já morreu. Não sei o que esta velha é para mim; a estimo muito, claro, mas desconheço qualquer nó de sangue que nos una. Desde que me lembro sempre a chamei pelos mais variados nomes: tia, avó, tia-avó, mãe, senhora; e desconfio que se começasse a chama-la de cachorro, periquito, papagaio, saúva, não estranharia nada. É sobretudo uma mulher singular.

Olho novamente pela janela. A imagem do quintal me deixa melancólico, ainda mais quando é cedo ou tarde demais. Parece uma pintura, mas é uma imagem única, de tal modo, que nunca deve ter sido pintada. Como não nasci com mão para aquarelas, mas sim para querelas, tentarei na medida do possível (ou seja: até que a tarefa se torne aborrecida e eu vá procurar fazer outra coisa) descrevê-la tendo a melhor das intenções, que é não a de ser fiel a realidade, mas a de transmitir nitidamente o contorno sombreado e impreciso das plantas, pedras e do pau seco ao centro, antigamente um jambeiro infrutífero. Da janela onde, privilegiadamente, revejo a paisagem naturalmente domesticada chamada de quintal, observo o muro baixo, passarela para as gatas da vizinha, ponto de pouso para os passarinhos e autoestrada para os ratos. Um muro, em sua quase totalidade, úmido pelo contato tão próximo das plantas que o roçam obscenamente em seus cantos mais escuros. As bordas do terreno se mostram taludas e florescentes; o centro é mais seco, daninhas pisadas e lascas de lajotas. De vez em quando um novo vulcãozinho expelindo saúva fresca, situado pelo toco do jambeiro. Ex-jambeiro. Alma morta.

 

O pires da xícara está desaparecido. Tomo café com bolacha Marília. A Tia (hoje vou chamar a Velha de Tia) A Tia ficou puta quando reparou a embalagem com os dizeres: BOLACHA MARÍLIA, TORRADINHA “Desde quando a gente come isso aqui em casa?” Pergunta natural, mas ela falou com tal rompância, com tanto condimento de brutalidade, que fiquei caiado de espanto. “Esta marca…” Pegou uma do pacote e levou á boca. “Bolacha velha ruim. Disse que era pra comprar a outra costumeira” Pois nem reparei a diferença. O que é que a bolacha tem? Vejo sua fachada: cinco andares, cada andar com cinco janelas, totalizando 25 aberturas, que alimento mais arejado!  E a tia mesmo assim a despreza! Qual a opinião das formigas sobre isto? Corri para o quarto com migalhas na mão. As pequenas haviam desaparecido, e o meu xixi, ao que tudo indicava, a terra já bebera.

A manhã está á toda: a luz acorda por completo, as sombras se espreguiçam em frente dos muros, das árvores e de outros troços mais absurdos. Não há mais tempo a perder para alguns, há tempo suficiente para outros, e – todos – contam com ele.

Vasculhei o dia.

Interessado no assassinato da barata. Corpo encontrado num balde d’água, boiando, umbigo pra cima, líquido branco recobria parte de sua face; a morta apresentava sinais de decomposição, antenas separadas da cabeça, dois gravetos flutuando na água. Daqui dá pra espremer uma história, pensei. Á maneira daqueles programas de TV em que aparecem mortes sobre mortes, como se fossem enredos por cima de enredos, empilhados, tantas versões. O melhor é os desaparecidos: com quem por último? Era famoso? As câmeras de segurança! Será que o próprio parente… Há, barata! Sua morte não me diz nada, mas a história por trás… qual será?

De repente o ar se torna nublado. A vizinha botou fogo nas folhas secas, já é a segunda vez que faz isso nesta semana, parece até que tem tanta coisa pra queimar. “Essa afrescalhada tem mais que fazer não? Acabei de pendurar as roupas… Ora merda” Pobre Tia. Impossível continuar no quintal. Dentro é quase tão insuportável como fora de casa, a fumaça espessa, indeciso se fechava ou abria as janelas, prendo a respiração, fecho os olhos, sufoco. “Como fede! Aposto que tá queimando papel de bunda, como a pessoa pode ser tão ordinária, menina?” Será? Analisando o muro, há vários buracos secretos, me aconchego numa vista para receber á imagem do quintal alheio. A vizinha: nunca pessoalmente. Ela queima com prazer, os braços estendidos, como se glórias desse, a quem? Cai um cisco no olho, coça, esfrego num murro, nada enxergo.

 

Atravesso à tarde que nem uma osga sem rabo enfrenta o descampado da parede, devagar quase parando. No centro da mesa da cozinha, a garrafona de água suava. Apesar da quentura infernal o liquido estava por demais gelado, desceu ralando o joelho da minha garganta. Dor de cabeça deixou a vontade mofina, larguei um sono ali mesmo na cozinha, encostado ao fogão. Sono de pedra, sonho de musgo. A dormida durou até a boca da noite se alastrar num sorriso de estrelas. Nestas horas sempre me detenho na vaga sensação de desperdício; saio para o quintal, me vejo mijando nas teias de aranha abandonadas, construídas sobre as plantas da Tia. Engraçado, o laguinho brilha como se estivesse de manhã. O rebanho de formigas se achega, rebanho não, multidão. Mesmo na escuridão da de ver o montueiro, se espraiando em torno do meu ouro morno. Carregam cuias minúsculas, pouco a pouco, mas ligeiramente, rebocam todo o meu xixi. Vão seguindo. É bonito. Lembra a procissão luminosa de Nossa Senhora, ou um bando de vagalumes aleijados da asa caminhando de emigração. Em que direção? Uns vão para o jambeiro, ex-jambeiro, pau-seco, enfim. Outros se dispersam pelas veias da terra, e ainda há um grupo que se direcionam ao muro, para a casa da vizinha. A fumaça recomeça. Entro em casa. Acendo a luz e fecho as portas e janelas.

Raul Lucas Padilha Costa

Resenha: Até Quando? O Vai e Vem

Título: Até Quando? O Vai e Vem
Autora: Christiane De Murville
Editora: Chiado
Páginas: 281

–   Resenha   –

João acreditava que a vida era injusta. Ele odiava seu emprego como servente de pedreiro, odiava as pessoas ao seu redor e odiava a si mesmo.

Era uma pessoa amarga sem qualquer sonho ou vontade de mudar o mundo ao seu redor ou a si mesmo. Porém, em um dia qualquer no trabalho, ele acaba se acidentando e morre tragicamente.

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Resenha: Meu Protetor

Título: Meu Protetor
Autora: Nana C. Fabreti
Editora: PinDragon
Páginas: 210

–   Resenha   –

Quem nunca teve aquela paixão platônica pelo garoto mais popular da escola? E ainda por cima seu vizinho de rua? Bom, Samantha passou por isso e também pela desilusão de uma paixão não correspondida e bem traumática. Quando já tinha fechado seu coração para o mundo e apenas se conformou em levar a vida a sua maneira, mal ela sabia que enquanto seu coração se fechava para o mundo outro coração arregalava as portas para o amor.

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O Ceguinho Pueteiro

“Pegadas Noturnas – Dissonetos barrockistas)” Autor: Glauco Mattoso Editora Lamparina. 2004

Pedro José Ferreira da Silva, vulgo Glauco Mattoso (trocadilho com “glaucomatoso”, portador de glaucoma, doença congênita que o poeta carregou durante toda sua vida, perdendo progressivamente a visão, até ficar totalmente cego em 1995) é um desses “bixos” (ou melhor: bixas) exóticos que deambulam na cena literária brasileira. Um raro exemplo de preciosismo misturado à erotismo, com toques fesceninos e masoquistas: tudo junto e misturado na panela do diabo de um cotidiano melado de suor, mas não o suor do trabalhador braçal (tanto glorificado em propagandas do governo), mas o suor dos suvacos cabeludos, suor das coxas das prostitutas, suor  de pés tatuados de frieiras…

Glauco Mattoso começou seu calvário poético nos anos 70, no auge da ditadura militar, fez parte da conhecida geração dos “poetas marginais”, época que trazia novos nomes como Paulo Leminsk, Ana Cristina César, Chacal, Torquato Neto e Franciso Alvim. Movimento contestador e contracultural, desafiava o regime vigente e a forma tradicional de fazer/perceber poesia; a tal “poesia marginal” utilizava-se do trocadilho, do poema-piada e do escracho desbragado como expressões para a construção de uma nova poesia mais visceral e mais próxima da realidade massacrante do cotidiano no país. Glauco Mattoso também inseria-se nessa onda, chegou mesmo a editar uma fanzine poética-panfletária intitulada “Jornal Dobradil” (clara paródia ao “Jornal do Brasil”)

Jornal Dobradil: uma amostra de seriedade e profissionalismo.

Durante os anos 70, 80 e meados de 90, Mattoso produz regularmente poemas, publica ensaios em jornais e compila material para a publicação de um “Dicionarinho do Palavrão e Correlatos”. Abaixo uma amostra de sua poesia deste período:

CREDO PROGRESSISTA

para Murilo Mendes & Chico Buarque


Creio em Deus Pátria,
plenipotenciário,
criador do espaço aéreo
e das águas territoriais,
do Mal e do Bem,
do Visível e do Invisível.
E em Creso Justo,
Seu único Filho,
nosso Senhor feudal,
Que é filho procedente de Pai,
Peixinho de Peixe,
Nadador de Natação,
Sangue do Húmus.
O Qual foi concebido do ‘Espírito das Leis’;
nasceu da Mata Virgem;
padeceu sob o Poder Moderador;
foi seviciado, chacinado
e Seu cadáver abandonado em local ermo;
desceu ao proletariado,
ao terceiro Dia do Trabalho ressurgiu dos pobres,
segundo as Escrituras Definitivas
de Compra e Venda
devidamente inscritas no Cartório
de Registro de Imóveis da Capital;
subiu ao Planalto,
está sentado à mão direitista de Deus Pátria,
donde há de vir e julgar os ricos e os pobres;
e o Seu império não terá fim.
Creio no ‘Espírito das Leis’;
na Santa Aliança, no Santo Ofício,
na Família, na Propriedade
e na Traição, digo, na Tradição;
na mancomunação, perdão,
na comunhão dos santos cassados;
na cassação dos mandatos;
na ressurreição da carne de primeira;
na puxa vida eterna,
Amém.

Glauco Mattoso

A partir de 95 Glauco Mattoso perde totalmente a visão devido ao glaucoma, mas isto não irá impedi-lo de continuar destilando merda para conseguir poesia: em 1999 retoma seu trabalho com um livro de sonetos.

Sonetos?!

Se o leitor [embora eu suspeite que isto não exista neste blog] é mais um caso dos que, quando estudantes do ensino fundamental-médio, aprenderam na aula de português o que é um verso, contar estrofes, dividir sílabas, identificar o tipo de rima e, sobretudo, aprenderam a ODIAR a poesia, deve, só de ler a palavra “soneto”, brochar instantaneamente. Um soneto é, de fato, uma forma fixa, uma moldura, uma fôrma limitante. Como um poeta dito “marginal” pode debandar pra uma “coisa” dessas? Afinal, num soneto só cabem imagens bonitinhas, como “céu” “flor” “vento” “andorinha”, certo?

Glauco Mattoso: o “Ceguinho Pueteiro”

Aí que está: Glauco Mattoso radicaliza a experiência com esta forma secular, dando-lhe um impulso totalmente diferente que qualquer poeta já ousou e, pra desgraça completa, faz isto quando já está completamente cego.

 Perpétuo [76]

Me sinto, enquanto cego, condenado

à pena de prisão domiciliar,

e cada qual que vem me visitar

é um carcereiro a mais a ser chupado.

 

Invejo o fuzilado e o enforcado,

pesando que terão menor azar.

Até ser felador num lupanar

prefiro, mesmo não remunerado.

 

Aqui não tenho escolha: é solidão

ou rola do primeiro que aparece,

chupada sem lavar, sem restrição.

 

O gosto em minha boca permanece.

Do tempo já perdi toda noção.

Nem sei se é noite escura ou se amanhece.

Glauco Mattoso [Pegadas Noturnas, pág 71]

Mattoso escreve, em tom sujo e biográfico, sobre a própria cegueira, sobre seu fetiche por pés masculinos (ele se considera um podólatra) e sobre o soneto em si, além de outras imundícies semelhantes.

Putanheiro [306]

Putaria, prostituta, marafona,
Rameira, pistoleira, meretriz….
Além do que o sinônimo nos diz,
Existe uma perita em cada zona.

Nem tudo na mulher é mera cona:
Há a bunda, o seio, a rótula, o nariz…
Cliente mais exótico, feliz,
A velha zona erógena abandona.

É o caso do podólatra, que quer
O pé dela em sua boca e no seu falo
Ou por seu pé na boca da mulher.

Do fetichista cego já nem falo,
Pois seu desejo não é pé qualquer,
Mas o que tem chulé, frieira e calo.

Glauco Mattoso [Pegadas Noturnas, pág 155]

Glauco afirma que o soneto, por causa de sua forma praticamente imutável, é mais fácil de ser montado “de cabeça” – pra quem é cego então, e só pode contar basicamente com a memória, é quase que a única escapatória para continuar trabalhando. Satírico e pornográfico, o “pueteiro” renova uma longa “escola de poetas malditos” como Bocage, Gregório de Matos e Françoise Villon.

 Sonetado [233]

Já li Lope de Veja e li Gregório,
Pois ambos sonetaram do soneto,
Seara na qual minha foice meto,
Tentando fazer algo meritório.

Não quero usar o mesmo palavrório,
Mas pilho-me, no meio do quarteto,
Montando a anatomia do esqueleto.
No oitavo verso, o alivio é provisório.

Contagem regressiva: faltam cinco.
Mais quatro, e fico livro do problema.
Agora faltam três…. Deus, daí-me afinco!

Com dois acabo a porra do poema.
Caralho! Só mais um! Até já brinco!
Gozei. Matei a pau! Que puta tema!’

Glauco Mattoso [Pegadas Noturnas, pág. 127]

Está edição da editora Lamparina é uma antologia de três livros de sonetos anteriormente publicados por Mattoso. Pegadas Noturnas (2004) traz ainda uma entrevista com o autor, além de um pequeno ensaio de Franklin Alves sobre a poesia de GM. Estranhamente (ou não) a obra de Mattoso tornou-se mais profícua depois das trevas-travas oculares permanentes, até o presente ano de 2019 ele já coleciona mais de 5.000 sonetos distribuídos, desde 1999, em várias publicações que passam despercebidas pelo grande público. O poeta mais punk do Brasil, que soube unir tradição com patifaria, não se esquecendo, é claro, de fazer a “boa poesia” (seja lá o que isso signifique).

Ao maior [214] Maior é o sentimento que o sentido.
Maior é a solidão do que a saudade.
Maior é a precisão do que a vontade.
Maior é Deus, segundo o desvalido.

Maior é o sabichão do que o sabido.
Maior é a servidão que a majestade.
Maior é o masoquismo do que Sade.
Maior é o meu poeta preferido.

Quem faz muito soneto, cedo ou tarde
acaba produzindo uma obra-prima,
contanto que não faça muito alarde.

Por trás da mera métrica ou da rima
esconde-se a coragem do covarde
e o medo, que jamais me desanima.

Glauco Mattoso [Pegadas Noturnas, pág. 115]

 

Baleia, a cadela

Quem sou na literatura?

A literatura é um instrumento de conhecimento do outro, do outro que está logo ali, mas que não conheço por inteiro. E, quando penso em conhecê-lo integralmente, acabo por descobrir a mim mesmo, revelado na tentativa de significar o que está próximo e, ao mesmo tempo, distante de mim. Eu sou por causa do outro, o outro é por causa de mim. É um revelar-se às escondidas, é um ato de velar que mostra os resquícios da vida.
Clube do Gueto