Passei toda a madrugada Cavando meu jardim desesperadamente Para tentar chegar ao núcleo da Terra Estudei toda minha vida Que não há lugar mais quente que lá Pelo menos por perto Até agora não encontrei uma sensação Que me consumisse completamente Que me deixasse sem saída, sem opção Fizesse aquecer cada milímetro da minha pele Me fizesse perder a razão E finalmente Descobrir o que a humanidade não sabe
“Ora(direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto…
E conversamos toda noite, enquanto A via-láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: “Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?”
E eu vos direi: “Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas”.
Já pensaram em viver em um mundo sem palavras? Um mundo sem vírgulas ou pontos? Um mundo sem rimas ou poesias? Sem estrofres ou parágrafos? Sem capas nem lombadas? Sem escritores ou leitores?
Seria um mundo tão triste, não acha? Sem contos de fadas, sem histórias de aventura e heróis, sem palavras apaixonadas proferidas por casais em uma grande trama romântica… Tudo seria um grande e completo nada.
Me apavora sequer pensar em viver em um mundo, em que um dia, não exista mais livros nem histórias…
Que os livros e os contos existam por muito mais tempo que a humaninade. Assim os nossos sonhos e nossa imaginação permanecerão eternos nos nossos corações.
Pedro José Ferreira da Silva, vulgo Glauco Mattoso (trocadilho com “glaucomatoso”, portador de glaucoma, doença congênita que o poeta carregou durante toda sua vida, perdendo progressivamente a visão, até ficar totalmente cego em 1995) é um desses “bixos” (ou melhor: bixas) exóticos que deambulam na cena literária brasileira. Um raro exemplo de preciosismo misturado à erotismo, com toques fesceninos e masoquistas: tudo junto e misturado na panela do diabo de um cotidiano melado de suor, mas não o suor do trabalhador braçal (tanto glorificado em propagandas do governo), mas o suor dos suvacos cabeludos, suor das coxas das prostitutas, suor de pés tatuados de frieiras…
Glauco Mattoso começou seu calvário poético nos anos 70, no auge da ditadura militar, fez parte da conhecida geração dos “poetas marginais”, época que trazia novos nomes como Paulo Leminsk, Ana Cristina César, Chacal, Torquato Neto e Franciso Alvim. Movimento contestador e contracultural, desafiava o regime vigente e a forma tradicional de fazer/perceber poesia; a tal “poesia marginal” utilizava-se do trocadilho, do poema-piada e do escracho desbragado como expressões para a construção de uma nova poesia mais visceral e mais próxima da realidade massacrante do cotidiano no país. Glauco Mattoso também inseria-se nessa onda, chegou mesmo a editar uma fanzine poética-panfletária intitulada “Jornal Dobradil” (clara paródia ao “Jornal do Brasil”)
Durante os anos 70, 80 e meados de 90, Mattoso produz regularmente poemas, publica ensaios em jornais e compila material para a publicação de um “Dicionarinho do Palavrão e Correlatos”. Abaixo uma amostra de sua poesia deste período:
CREDO PROGRESSISTA
para Murilo Mendes & Chico Buarque
Creio em Deus Pátria, plenipotenciário, criador do espaço aéreo e das águas territoriais, do Mal e do Bem, do Visível e do Invisível. E em Creso Justo, Seu único Filho, nosso Senhor feudal, Que é filho procedente de Pai, Peixinho de Peixe, Nadador de Natação, Sangue do Húmus. O Qual foi concebido do ‘Espírito das Leis’; nasceu da Mata Virgem; padeceu sob o Poder Moderador; foi seviciado, chacinado e Seu cadáver abandonado em local ermo; desceu ao proletariado, ao terceiro Dia do Trabalho ressurgiu dos pobres, segundo as Escrituras Definitivas de Compra e Venda devidamente inscritas no Cartório de Registro de Imóveis da Capital; subiu ao Planalto, está sentado à mão direitista de Deus Pátria, donde há de vir e julgar os ricos e os pobres; e o Seu império não terá fim. Creio no ‘Espírito das Leis’; na Santa Aliança, no Santo Ofício, na Família, na Propriedade e na Traição, digo, na Tradição; na mancomunação, perdão, na comunhão dos santos cassados; na cassação dos mandatos; na ressurreição da carne de primeira; na puxa vida eterna, Amém.
Glauco Mattoso
A partir de 95 Glauco Mattoso perde totalmente a visão devido ao glaucoma, mas isto não irá impedi-lo de continuar destilando merda para conseguir poesia: em 1999 retoma seu trabalho com um livro de sonetos.
Sonetos?!
Se o leitor [embora eu suspeite que isto não exista neste blog] é mais um caso dos que, quando estudantes do ensino fundamental-médio, aprenderam na aula de português o que é um verso, contar estrofes, dividir sílabas, identificar o tipo de rima e, sobretudo, aprenderam a ODIAR a poesia, deve, só de ler a palavra “soneto”, brochar instantaneamente. Um soneto é, de fato, uma forma fixa, uma moldura, uma fôrma limitante. Como um poeta dito “marginal” pode debandar pra uma “coisa” dessas? Afinal, num soneto só cabem imagens bonitinhas, como “céu” “flor” “vento” “andorinha”, certo?
Aí que está: Glauco Mattoso radicaliza a experiência com esta forma secular, dando-lhe um impulso totalmente diferente que qualquer poeta já ousou e, pra desgraça completa, faz isto quando já está completamente cego.
Perpétuo [76]
Me sinto, enquanto cego, condenado
à pena de prisão domiciliar,
e cada qual que vem me visitar
é um carcereiro a mais a ser chupado.
Invejo o fuzilado e o enforcado,
pesando que terão menor azar.
Até ser felador num lupanar
prefiro, mesmo não remunerado.
Aqui não tenho escolha: é solidão
ou rola do primeiro que aparece,
chupada sem lavar, sem restrição.
O gosto em minha boca permanece.
Do tempo já perdi toda noção.
Nem sei se é noite escura ou se amanhece.
Glauco Mattoso [Pegadas Noturnas, pág 71]
Mattoso escreve, em tom sujo e biográfico, sobre a própria cegueira, sobre seu fetiche por pés masculinos (ele se considera um podólatra) e sobre o soneto em si, além de outras imundícies semelhantes.
Putanheiro [306]
Putaria, prostituta, marafona, Rameira, pistoleira, meretriz…. Além do que o sinônimo nos diz, Existe uma perita em cada zona.
Nem tudo na mulher é mera cona: Há a bunda, o seio, a rótula, o nariz… Cliente mais exótico, feliz, A velha zona erógena abandona.
É o caso do podólatra, que quer O pé dela em sua boca e no seu falo Ou por seu pé na boca da mulher.
Do fetichista cego já nem falo, Pois seu desejo não é pé qualquer, Mas o que tem chulé, frieira e calo.
Glauco Mattoso [Pegadas Noturnas, pág 155]
Glauco afirma que o soneto, por causa de sua forma praticamente imutável, é mais fácil de ser montado “de cabeça” – pra quem é cego então, e só pode contar basicamente com a memória, é quase que a única escapatória para continuar trabalhando. Satírico e pornográfico, o “pueteiro” renova uma longa “escola de poetas malditos” como Bocage, Gregório de Matos e Françoise Villon.
Sonetado [233]
Já li Lope de Veja e li Gregório, Pois ambos sonetaram do soneto, Seara na qual minha foice meto, Tentando fazer algo meritório.
Não quero usar o mesmo palavrório, Mas pilho-me, no meio do quarteto, Montando a anatomia do esqueleto. No oitavo verso, o alivio é provisório.
Contagem regressiva: faltam cinco. Mais quatro, e fico livro do problema. Agora faltam três…. Deus, daí-me afinco!
Com dois acabo a porra do poema. Caralho! Só mais um! Até já brinco! Gozei. Matei a pau! Que puta tema!’
Glauco Mattoso [Pegadas Noturnas, pág. 127]
Está edição da editora Lamparina é uma antologia de três livros de sonetos anteriormente publicados por Mattoso. Pegadas Noturnas (2004) traz ainda uma entrevista com o autor, além de um pequeno ensaio de Franklin Alves sobre a poesia de GM. Estranhamente (ou não) a obra de Mattoso tornou-se mais profícua depois das trevas-travas oculares permanentes, até o presente ano de 2019 ele já coleciona mais de 5.000 sonetos distribuídos, desde 1999, em várias publicações que passam despercebidas pelo grande público. O poeta mais punk do Brasil, que soube unir tradição com patifaria, não se esquecendo, é claro, de fazer a “boa poesia” (seja lá o que isso signifique).
Ao maior [214]
Maior é o sentimento que o sentido. Maior é a solidão do que a saudade. Maior é a precisão do que a vontade. Maior é Deus, segundo o desvalido.
Maior é o sabichão do que o sabido. Maior é a servidão que a majestade. Maior é o masoquismo do que Sade. Maior é o meu poeta preferido.
Quem faz muito soneto, cedo ou tarde acaba produzindo uma obra-prima, contanto que não faça muito alarde.
Por trás da mera métrica ou da rima esconde-se a coragem do covarde e o medo, que jamais me desanima.