“O intervalo que me separa de meu cadáver é uma ferida para mim; todavia,
aspiro em vão às seduções da tumba: não podendo separar-me de nada, nem
cessar de palpitar, tudo em mim assegura-me que os vermes permaneceriam
inativos sobre meus instintos. Tão incompetente na vida como na morte, odeio-me,
e neste ódio sonho com outra vida, com outra morte. E por haver querido ser
um sábio como nunca houve outro, sou apenas um louco entre os loucos…” [Breviário de Decomposição, E. M. Cioran]
“Afinal, isto bem me contentaria se eu conseguisse persuadir-me que esta
teoria não é o que é, um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha
inteligência, quase para ela não perceber que, no fundo, não há senão a minha
timidez, a minha incompetência para a vida.” [Livro do Desassossego, Fernando Pessoa]
Contemporâneos por estarem igualmente fora do tempo, Cioran e Fernando Pessoa eram tipos solitários, viviam em mansardas, caminhavam sem rumo pela cidade ou pelo campo; eram misantropos, sim, mas não pessimistas como podem levar alguns a crer. “Eu não sou pessimista, sou triste.” diria Fernando Pessoa… ou Cioran? A escrita de ambos é tão única e tão semelhantes entre si são seus escritos que um parece ser o comentador da obra do outro. O tédio, a solidão, o vazio, a tristeza, o desespero, a morte, a ilusão, o sonho, o tempo e a eternidade, os santos, Deus e o diabo são temas recorrentemente assediados por estes dois filósofos órfãos de qualquer Verdade/Doutrina/Sistema… enfim, carentes de uma qualquer forma sólida de consolação.
Apesar de ser mais creditado como poeta, Fernando António Nogueira Pessoa pode ser considerado como um dos pensadores mais importantes do inicio do século. Nascido em 1888, em Lisboa, o poeta viveu praticamente a vida inteira na obscuridade. Embora só tenha lançado um livro em vida (“Mensagem”, de 1934), produziu bastante: contos, artigos, poemas, peças teatrais (como sua releitura do “Fausto” de Goethe), foi até mesmo diretor de uma revista literária portuguesa (“Orpheu”, 1915) e escreveu, quase que compulsivamente, fragmentos, fragmentos e mais fragmentos. Estes excertos — juntados desde sua juventude até sua maturidade e morte precoce aos 47 anos — são talvez o que há de melhor em todo seu legado. Reunidos num só volume publicado postumamente, o “Livro do Desassossego” reúne os fragmentos escritos por Pessoa…ou melhor dizendo: por Bernardo Soares, um dos tantos “fantoches” do poeta.
As vezes aforismos, outras vezes pensamentos vagos, descrições de paisagens que se confundem com o estado de espírito do narrador, o conteúdo do “Livro do Desassossego” é a relação entre Sensação e Abstração sem o intermédio desta ponte de pedágio chamada Realidade. Pessoa paga caro por este contrabando de luz anêmica (mas, ainda sim, luz!), toda vez que se lê Pessoa tem se a impressão de que ele encontra a clarividência num balcão de feira, mete-a no bolso e sai correndo sem pagar; e depois de muito correr, já então bem distante, percebe que seu bolso está furado.
Cioran, ao falar dos poetas em geral, acaba por fazer um retrato fidelíssimo de Pessoa:
“O poeta seria um desertor odioso da realidade se, em sua fuga, não levasse
consigo sua desgraça. Ao contrário do místico ou do sábio, não saberia escapar a
si mesmo, nem evadir-se do centro de sua própria obsessão: mesmo seus êxtases
são incuráveis, e sinais premonitórios de desastres. Inapto para salvar-se, para ele
tudo é possível, exceto sua vida…”
Nascido 23 anos depois que o português, o romeno Emil Cioran pode ser considerado possuidor de um espírito mais de literato do que exatamente de um filosófo num sentido rigoroso do termo. Apesar de ter sido influenciado por nomes como Nietzsche, Schopenhauer, Pascal e kierkegaard, Cioran se distingue radicalmente de seus precursores ao encarar com extrema desconfiança o exercício filosófico. Para Cioran as “revoluções só são possíveis por meio do adjetivo” sejam elas no plano político ou no “mundo das ideias”; não compactua com nenhuma dessas visões de avanço ou progresso no pensamento humano. O ser humano já não possui mais nem uma escapatória do Nada e da Morte absoluta; sem perdão e sem nenhuma forma de salvação, seja através de Deus ou de uma humanidade elevada ao super-homem anunciado por Nietzsche. Se Deus está morto, a sociedade e o homem são meros cadáveres ambulantes. O corpo de Deus está desaparecido, mas o do homem está exposto em praça pública, ou seja: muito presente para que possa ser ignorado.
“Os grandes sistemas, no fundo, são apenas brilhantes tautologias. Que
vantagem há em saber que a natureza do ser consiste na “vontade de viver”, na
“ideia”, ou na fantasia de Deus ou da Química? Simples proliferação de palavras,
sutis deslocamentos de sentidos. O que é repele o abraço verbal, e a experiência
íntima não nos revela nada além do instante privilegiado e inexprimível. Aliás, o
ser mesmo não é mais que uma pretensão do Nada.” [Breviário de Decomposição, Emil Cioran]
Em 1937 Cioran se manda para Paris. Lá escreve seu primeiro livro totalmente em francês, língua que adotaria por questões de estilo. O “Breviário de Decomposição” foi escrito e reescrito várias vezes até satisfazer a tara de Cioran por uma prosa enxuta, o livro foi publicado em 1949 e tornou o filósofo cada vez mais conhecido. Numa linguagem explosiva e, por vezes, poética, Cioran faz da negação e do ceticismo antídotos fortíssimos contra o fanatismo e as ilusões indispensáveis para uma vida saudável. Vida saudável, uma vida que aspira a felicidade e ao sucesso? É algo totalmente incolor, despersonalizante afinal, diria Cioran: “Só somos nós mesmos pela soma de nossos fracassos.”
Cioran, embora não possua a métrica e a rima como Fernando Pessoa, tem o ritmo próprio dos poetas, sabe fazer as palavras gingarem a seu bel-prazer:
“Quando viste em toda convicção uma desonra e em todo apego uma
profanação, já não tens direito a esperar, nem neste mundo nem no outro, uma
sorte modificada pela esperança. Deves escolher um promontório ideal,
ridiculamente solitário, ou uma estrela farsante, rebelde às constelações.“
Fernando Pessoa e Cioran, bastavam a si mesmos, segregados do mundo, encalhados no “Eu”, sabiam que toda profundidade de um poço não valia pela liberdade da superfície, do raso e das aparências, “tudo é símbolo!”. Dois líricos que tocavam harpas feitas de ossos roídos por cães vagabundos da rua; sabiam que a vida não vale a pena a ser vivida, que não há nada depois da morte e e justamente por isto foram até o fim.
Cioran, em uma entrevista, confessou não ter se matado pelo simples motivo de que o suicídio era algo real: ele tirava forças para continuar ao se apoiar na ideia de um suicídio sempre à mão, algo que poderia ser utilizado quando as coisas ficassem totalmente insuportáveis. Já Fernando Pessoa esclareceria sua persistência em existir pelo fato de que o suicídio seria a abdicação de nossas várias personalidades por causa de uma só: “Morrer é sermos outros totalmente. Por isso o suicídio é a cobardia; é entregarmo-nos totalmente à vida.”
“Pensar é destruir. O próprio processo do pensamento o indica para o
mesmo pensamento, porque pensar é decompor. Se os homens soubessem
meditar no mistério da vida, se soubessem sentir as mil complexidades que
espiam a alma em cada pormenor da ação, não agiriam nunca, não viveriam
até. Matar-se-iam de assustados, como os que se suicidam para não ser
guilhotinados no dia seguinte.” [Livro do Desassossego, Fernando Pessoa]
[Uma reportagem de Baleia, a cadela]
Não se po de falar de poesia na lusofonia sem ser mencionados os clássicos de F. Pessoa.