Chuva (Guimarães Rosa)

CHUVA

Vai chover chuva de vento.
Já estou sentindo um cheiro d’água,
que vem do céu cinzento.
As formigas lavadeiras cruzam o quintal
em filas compridas de correição.
Minhocas brotam à flor da terra.
— Eh aguão!…
A chuva vai vir da banda da serra,
porque o joão-de-barro abriu a sua porta
virada para o sul.
As sementinhas do meloso seco
devem estar dançando na poeira.
Eu não ouvi o primeiro trovão,
mas o zebu está escutando,
com a cabeça encostada no chão.

Três urubus passam no alto,
em voo lento,
em reta longa.
Vão para as lapas dos lajedos.
“Vai fazer tua casa, Urubu!…
Tempo de chuva aí vem, Urubu!…”

Já deve estar chovendo nas cabeceiras da serra,
porque o ribeirão engrossa, cor de terra.
Vai chover chuva de vento.
Os bois vêm correndo, pasto abaixo,
procurando as árvores do capão.

Vai invernar…
Eu hoje amanheci alegre,
querendo cantar…
O vento já chegou nas casuarinas,
e o sapo saiu de debaixo da laje
para um buraco no meio do pátio
onde vai se encher uma lagoa.
— Eh aguão!…
— Olá, José, arreia meu Cabiúna,
liso do casco à testa,
preto do rabo à crina,
que eu vou sair pelo cerrado afora,
a galopar, com a chuva me correndo atrás…
Ela já vem, branquinha, cheirando a água nova,
e a serra está clarinha, neblinando…
A chuva vem rolando, vem chiando,
e o vento assoviando
— Galopa, Cabiúna, que a água vem vindo,
e as sementinhas do meloso seco estão dançando…

Trecho – Guimarães Rosa

“O poeta não cita: canta. Não se traça programas, porque a sua estrada não tem marcos nem destino. Se repete, são idéias e imagens que volvem à tona por poder próprio, pois que entre elas há também uma sobrevivência do mais apto . Não se aliena, como um lunático, das agitações coletivas e contemporâneas, porque arte e vida são planos não superpostos mas interpenetrados, com o ar entranhado nas massas de água, indispensável ao peixe—neste caso ao homem, que vive a vida e que respira arte. Mas tal contribuição para o meio humano será a de um órgão para um organismo: instintiva, sem a consciência de uma intenção, automática, discreta e subterrânea.”

Variações sobre o tema da essência – Vinicius de Moraes

VARIAÇÕES SOBRE O TEMA DA ESSÊNCIA

Rio de Janeiro , 1935

(Três movimentos em busca da música)

C’est aussi simple qu’une phrase musicale. 
Rimbaud

I
Foi no instante em que o luar desceu da face do Cristo como um velário
E na madrugada atenta ouviu-se um choro convulso de criança despertando
Sem que nada se movesse na treva entrou violentamente pela janela um grande seio branco
Um grande seio apunhalado de onde escorria um sangue roxo e que pulsava como se possuísse um coração.
Eu estava estendido, insone, como quem vai morrer — o ar pesava sobre mim como um sudário
E as ideias tinham misteriosamente retornado às coisas e boiavam como pássaros fora da minha compreensão.
O grande seio veio do espaço, veio do espaço e ficou batendo no ar como um corpo de pombo
Veio com o terror que me apertou a garganta para que o
[mundo não pudesse ouvir meu grito (o mundo! o mundo! o mundo!…)
Tudo era o instante original, mas eu de nada sabia senão do
[meu horror e da volúpia que vinha crescendo em minhas pernas
E que brotava como um lírio impuro e ficava palpitando dentro do ar.
Era o caos da poesia — eu vivia ali como a pedra despenhada no espaço perfeito
Mas no olhar que eu lançava dentro de mim, oh, eu sei que
[havia um grande seio de alabastro pingando sangue e leite
E que um lírio vermelho hauria desesperadamente como uma boca infantil longe da dor.
Voavam sobre mim asas cansadas e crepes de luto flutuavam — eu tinha embebido a noite de cansaço
Eu sentia o branco seio murchar, murchar sem vida e o rubro lírio crescer cheio de seiva
E o horror sair brandamente pelas janelas e a aragem balançar a imagem do Cristo pra lá e pra cá
Eu sentia a volúpia dormir ao canto dos galos e o luar pousar agora sobre o papel branco como o seio
E a aurora vir nascendo sob o meu corpo e ir me levando para as
[ideias negras, azuis, verdes, rubras, mas também misteriosas.
Eu me levantei — nos meus dedos os sentidos vivendo, na minha mão um objeto como uma lâmina
E às cegas eu feri o papel como o seio, enquanto o meu olhar hauria o seio como o lírio.

O poema desencantado nascia das sombras de Deus…

II

Provei as fontes de mel nas cavernas tropicais… (— minha imaginação, enlouquece!)
Fui perseguido pelas floras carnívoras dos vales torturados e penetrei os rios e cheguei aos bordos do mar fantástico
Nada me impediu de sonhar a poesia — oh, eu me converti à necessidade do amor primeiro
E nas correspondências do finito em mim cheguei aos grandes sistemas poéticos do renovamento.
Só desejei a essência — vi campos de lírios se levantarem da terra e cujas raízes eram ratos brancos em fuga
Vi-os que corriam para as montanhas e os persegui com a minha ira — subi as
[escarpas ardentes como se foram virgens
E quando do mais alto olhei o céu recebi em pleno rosto o vômito das estrelas menstruadas — eternidade!

O poeta é como a criança que viu a estrela. — Ah, balbucios, palavras entrecortadas e ritmos de berço. De súbito a dor.

Ai de mim! É como o jovem que sonhando nas janelas azuis, eis que a
[incompreensão vem e ele entra e atravessa à toa um grande corredor sombrio
E vai se debruçar na janela do fim que se abre para a nova paisagem e ali estende o seu sofrimento (ele retornará…)
Movimentos de areia no meu espírito como se fossem nascer cidades esplêndidas — paz! paz!

Música longínqua penetrando a terra e devolvendo misteriosamente a doçura ao espelho das lâminas e ao brilho dos diamantes. Homens correndo na minha imaginação — por que correm os homens?

O terrível é pensar que há loucos como eu em todas as estradas
Os faces-de-lua, seres tristes e vãos, legionários do deserto
(Não seria ridículo vê-los carregando o sexo enorme às costas como trágicas mochilas — ai! Deixem-me rir…
Deixem-me rir — por Deus! — que eu me perco em visões que nem sei mais…)

É Jesus passando pelas ruas de Jerusalém ao peso da cruz. Nos campos e nos montes a poesia das parábolas. Vociferações, ódios, punhos cerrados contra o mistério. Destino.

Oh, não! Não é a ilusão enganadora nem a palavra vã dos oráculos e dos sonhos
O poeta mentirá para que o sofrimento dos homens se perpetue.

E eu diria… “Sonhei as fontes de mel…”

III

Do amor como do fruto. (Sonhos dolorosos das ermas madrugadas acordando…)
Nas savanas a visão dos cactos parados à sombra dos escravos — as negras mãos no ventre luminoso das jazidas
Do amor como do fruto. (A alma dos sons nos algodoais das velhas lendas…)
Êxtases da terra às manadas de búfalos passando — ecos vertiginosos das quebradas azuis

Ô Mighty Lord!

Os rios, os pinheiros e a luz no olhar dos cães — as raposas brancas no olhar dos caçadores
Lobos uivando, Yukon! Yukon! Yukon! (Casebres nascendo das montanhas paralisadas…)
Do amor como da serenidade. Saudade dos vulcões nas lavas de neve descendo os abismos
Cantos frios de pássaros desconhecidos. (Arco-íris como pórticos de eternidade…)
Do amor como da serenidade nas planícies infinitas o espírito das asas no vento

Ô Lord of Peace!

Do amor como da morte. (Ilhas de gelo ao sabor das correntes…)
Ursas surgindo da aurora boreal como almas gigantescas do grande-silêncio-branco
Do amor como da morte. (Gotas de sangue sobre a neve…)
A vida das focas continuamente se arrastando para o não-sei-onde — cadáveres eternos de heróis longínquos

Ô Lord of Death!

Variação sobre um soneto de Sheakespeare – Vinicius de Moraes

VARIAÇÃO SOBRE UM SONETO DE SHAKESPEARE

Rio de Janeiro , 2004

És como um dia cálido de estio…
Azul? Não, és mais linda e mais amena
O verão como tudo traz o frio
E o verão é inconstante, e tu serena.

Tu não trazes o frio, nem a pena
Da luz foste – tu vives, como um rio
Que cantasse uma mesma cantilena
Num sempre novo manso desvario.

Não morre o estio em ti – e no teu rosto Ele deixou as cores da manhã E as tristezas suaves do sol-posto.

Sem as marcas cruéis da noite vã. E a morte que em ser também se deita Em tua alma descansa satisfeita.

O soneto é uma composição poética constituída por 14 versos, distribuídos, segundo o modelo petrarquiano (também chamado “soneto italiano”), em 2 quadras e 2 tercetos, as primeiras apresentando duas ordens de rimas e estes últimos duas ou três ordens. O esquema rimático mais freqüente é:
a b b a / a b b a / c d c / c d c

Tudo leva a crer que o soneto foi criado no século XIII, pelas mãos do poeta siciliano Giacomo de Lentino, em Palermo.

O primeiro grande nome ligado ao soneto é o de Dante, devendo-se a outro mestre da poesia, Petrarca, a consolidação e a difusão do modelo.

Em Portugal, o soneto teve como seu primeiro cultor o poeta Sá de Miranda. Camões dedicou-se amplamente ao soneto, alcançando com ele alguns dos mais altos momentos da literatura universal de todos os tempos.

No Brasil seiscentista, Gregório de Matos empregou o soneto tanto para a lírica sacra e amorosa quanto para a satírica. Adiante, Cláudio Manuel da Costa firmou-se como sonetista de grande valor, ajudando a fortalecer uma tradição que daria nomes como Olavo Bilac e Cruz e Sousa, entre outros.

Num primeiro momento, os modernistas se voltaram contra o soneto, atitude inserida num amplo programa de ruptura com a “fôrma” das formas fixas e dos padrões poéticos tradicionais. No entanto, depois de instalado o verso livre e conquistadas tantas outras liberdades nos níveis da estruturação e do conteúdo, poetas como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade retornaram ao soneto.

Vinicius de Moraes consolidou-se como grande sonetista da moderna literatura brasileira e ajudou a popularizar a forma.

O soneto também pode ser estruturado em três quartetos e um dístico, sendo chamado então “soneto inglês”.

UIARAS, NA MONTANHA, AO SOL,… – Vinicius de Moraes

UIARAS, NA MONTANHA, AO SOL,…

Rio de Janeiro , 2004

Uiaras, na montanha, ao sol, sob a cascata
Rutilante, movendo as nádegas de prata
Na farta esmeralda do limo, em gelatina
Nuas, verdes, nas grandes pedras, na água fina
– Povo claro de mãos, de torsos e de seios
Que rubra solidão em mim vossos enleios
Mornos, graves, fizeram, lânguidos, sonhar
Que, em mim, se enrijeceu na ânsia de vos dar
Minha maior humanidade?…
Desejei
Vos fecundar
Não, não o doloroso e apenas
Gozo de conseguir, das vossas ancas, plenas
Frenético, a rápida sombra do distante
Ah, bem antes o sonho, o voto apaziguante
A sensação do vento da manhã, em ouro
Dançarino ideal, trazendo o pólen louro
Às flores ainda adormecidas nas estrelas…

(Qualquer coisa que vem da calma de sabê-las
Infecundas… – e só sentir fecundidade
No infecundo, e só viver dessa verdade…)

Como eu sou desigual! talvez que o meu desejo
Seja terrível… – pequena visão que eu vejo
Cresce acima de mim meu corpo animal.

Ó dor! só sinto o Bem como o supremo mal
Ó seres de paixão!…
– que mais cruel martírio
Essa espera sem fim, morrendo como um lírio
Pelo amor sem perdão das rosas impossíveis?…
No entanto, que música acordas, que invisíveis
Preces despertas, que cores descobres, claridade!
Sou bem alguém, alguma coisa, ou, uma ansiedade
De seres e de coisas?

Ah, meu corpo teme as
Trevas da noite, mas ela deseja dessas fêmeas
A treva da consumação… Mas serei eu
Depois? Será minha a minha alma e meu
O meu corpo?
Jamais.
Mínha vaidade é eterna.

Olhe aqui, Mr. Buster – Vinicius de Moraes

OLHE AQUI, MR. BUSTER *

Rio de Janeiro , 1962

* Este poema é dedicado a um americano simpático, extrovertido e podre de rico, em cuja casa estive poucos dias antes de minha volta ao Brasil, depois de cinco anos de Los Angeles, EUA. Mr. Buster não podia compreender como é que eu, tendo ainda o direito de permanecer mais um ano na Califórnia, preferia, com grande prejuízo financeiro, voltar para a “Latin America”, como dizia ele. Eis aqui a explicação, que Mr. Buster certamente não receberá, a não ser que esteja morto e esse negócio de espiritismo funcione.

Olhe aqui, Mr. Buster: está muito certo
Que o Sr. tenha um apartamento em Park Avenue e uma casa em Beverly Hills.
Está muito certo que em seu apartamento de Park Avenue
O Sr. tenha um caco de friso do Partenon, e no quintal de sua casa em Hollywood
Um poço de petróleo trabalhando de dia para lhe dar dinheiro e de noite para lhe dar insônia
Está muito certo que em ambas as residências
O Sr. tenha geladeiras gigantescas capazes de conservar o seu preconceito racial
Por muitos anos a vir, e vacuum-cleaners com mais chupo
Que um beijo de Marilyn Monroe, e máquinas de lavar
Capazes de apagar a mancha de seu desgosto de ter posto tanto dinheiro em vão na guerra da
Coréia.
Está certo que em sua mesa as torradas saltem nervosamente de torradeiras automáticas
E suas portas se abram com célula fotelétrica. Está muito certo
Que o Sr. tenha cinema em casa para os meninos verem filmes de mocinho
Isto sem falar nos quatro aparelhos de televisão e na fabulosa hi-fi
Com alto-falantes espalhados por todos os andares, inclusive nos banheiros.
Está muito certo que a Sra. Buster seja citada uma vez por mês por Elsa Maxwell
E tenha dois psiquiatras: um em Nova York, outro em Los Angeles, para as duas “estações” do
ano.
Está tudo muito certo, Mr. Buster – o Sr. ainda acabará governador do seu estado
E sem dúvida presidente de muitas companhias de petróleo, aço e consciências enlatadas.
Mas me diga uma coisa, Mr. Buster
Me diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:
O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?
O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?
O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?

O poeta Hart Crane suicida-se no mar – Vinicius de Moraes

O POETA HART CRANE SUICIDA-SE NO MAR

Rio de Janeiro , 1953

Quando mergulhaste na água
Não sentiste como é fria
Como é fria assim na noite
Como é fria, como é fria?
E ao teu medo que por certo
Te acordou da nostalgia
(Essa incrível nostalgia
Dos que vivem no deserto…)
Que te disse a Poesia?

Que te disse a Poesia
Quando Vênus que luzia
No céu tão perto (tão longe
Da tua melancolia…)
Brilhou na tua agonia
De moribundo desperto?

Que te disse a Poesia
Sobre o líquido deserto
Ante o mar boquiaberto
Incerto se te engolia
Ou ao navio a rumo certo
Que na noite se escondia?

Temeste a morte, poeta?
Temeste a escarpa sombria
Que sob a tua agonia
Descia sem rumo certo?
Como sentiste o deserto
O deserto absoluto
O oceano absoluto
Imenso, sozinho, aberto?

Que te falou o Universo
O infinito a descoberto?
Que te disse o amor incerto
Das ondas na ventania?
Que frouxos de zombaria
Não ouviste, ainda desperto
Às estrelas que por certo
Cochichavam luz macia?

Sentiste angústia, poeta
Ou um espasmo de alegria
Ao sentires que bulia
Um peixe nadando perto?
A tua carne não fremia
À idéia da dança inerte
Que teu corpo dançaria
No pélago submerso?

Dançaste muito, poeta
Entre os véus da água sombria
Coberto pela redoma
Da grande noite vazia?
Que coisas viste, poeta?

De que segredos soubeste
Suspenso na crista agreste
Do imenso abismo sem meta?

Dançaste muito, poeta?
Que te disse a Poesia?

Rio de Janeiro, 1953.

Hart Crane (Ohio, 1899-1933) foi poeta. Suicidou-se saltando do Navio que o levava a Nova Iorque. Admirava T. S. Elliot, inspirando-se nele em sua busca de uma linguagem capaz de traduzir a vitalidade, as ambigüidade e perplexidades do mundo moderno. Sua obra mais conhecida é o poema épico The Bridge (A Ponte), iniciado em 1923 e publicado em 1930. Segundo Crane, o poema era uma “síntese mística da América”.

Noturnamente-se me lembro – Vinicius de Moraes

NOTURNAMENTE – SE ME LEMBRO!…

Rio de Janeiro , 2004

Noturnamente – se me lembro! como que a estranha carga se diluía de meus ombros ante as irradiações esplêndidas
E desembaraçado eu seguia através as cidades se abrindo ao sésamo misterioso do meu sangue batendo
E chegava mesmo a perseguir as belas éguas cuja pele branca avultava na claridade mágica
E fugiam balançando os peitos e o flanco rasgado onde a fecundidade eu via.
Mas quando chegava a satisfazer o ímpeto que me arrastava como um desesperado pelas ruas
E voltava vazio como se tivesse matado a alma nos estrangulamentos da carne rígida
Subitamente sentia de novo a carga me fazendo vergar o rosto para a terra
E o chicote me cortava as faces e o espírito esporeado galopava éguas na treva.
Pelos dias eu vou – e a minha sombra fareja o caminho – mas quando meu pensamento chega a minha alma já está
Um momento eu bebo o instante certo de que será para sempre – ó os campos onde estarei sozinho!
No entanto obrigam-me a andar – ai de mim, é demais! porque eu sei que aquele pio de ave é o grito dos sertões desaparecidos
E aquela pedra de forma estranha é a montanha escancarada e aquele torrão de terra é a sede nas fontes.
Às vezes um ruído me assalta e eu paro e escuto – um fraco farfalhar de folhas – tremo
Temo os dolorosos ecos das grotas, os luares e as águas que escorrem ocultas e eternas
Sei que entre os líríos das encostas há víboras que espreitam e sei que é frágil a margem dos precipícios
Mas o pior castigo é ter que seguir pelo solo seguro e infinito do meio das estradas
Porque há muito tempo eu sou a alimária de um anjo cuja missão eu desconheço
Um anjo de grande sombra informe que se confunde com a treva da minha caminhada
E cujo riso fúnebre me apavora quando a garra da luxúria me amargura os membros
E cuja ira me condena ao castigo de um arrependimento solitário e eterno.

Não comerei da alface a verde pétala – Vinicius de Moraes

NÃO COMEREI DA ALFACE A VERDE PÉTALA

Los Angeles , 1962

Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem mais aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas pêras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro; dêem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei, feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.

Meus caros, volta-se porque se tem saudade… – Vinicius de Moraes

MEUS CAROS, VOLTA-SE PORQUE SE TEM SAUDADE…

Rio de Janeiro , 2004

Meus caros, volta-se porque se tem saudade
Porque se foi feliz intimamente
Volta-se porque se tocou num inocente
E porque se encontrou tranqüilidade

A despeito da vida que acorrente
Volta-se, volta-se para a sinceridade
Volta-se sempre, tarde ou de repente
Na alegria ou na infelicidade.

E nada como esse apelo da lembrança
Para se transfigurar numa esperança
Essa desolação que uma alma leve

Assim é que, partindo, eu vou levando
Toda a desolação de um até-quando
Num ardente desejo de até-breve.

Clube do Gueto