O Eterno Retorno na Literatura

Autor do Texto: Raul Lucas, nascido no ultimo ano do século XX. É um homem de garranchos mais do que de letras.

É bem possível que já se tenha ouvido falar, ao menos uma vez, a respeito da expressão “eterno retorno”. Nietzsche, no seu livro A Gaia Ciência (1882) coloca:

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!“ Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” (aforismo 56)

Sem entrar em considerações mais especificas (até pra não ser pedante), desloco a ideia geral ( […]cada dor e cada prazer e cada pensamento […] há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência […] ) para o campo da Literatura.

Já tiveram a impressão de estar lendo um livro e, de repente, ser assaltado pela impressão de já ter lido – não exatamente com as mesmas palavras –  tudo aquilo?

Pode ser uma ideia, uma imagem poética, uma observação psicológica, uma situação, algo que seja, sobretudo, original (ou, no minimo, incomum). Isto Exclui, é claro, os chavões e clichês que se propagam por séculos, seja nas estruturas narrativas (historinhas de amor do tipo ‘melação’, ou aventuras ‘com mil peripécias e tudo dá certo no final’), ou nas construções da frase, do corpo do texto; tipo “se você o ama, deixe-o livre”, ou algo que soe como “o sol derramava seus últimos raios pela extensão dos prados” ou ainda “as lágrimas caiam de seu rosto, como pérolas”, ou outras convenções do gênero.

Então que especie de ‘eterno retorno da Literatura’ estou me referindo?

– O texto (a passagem especifica) passa por sobre nosso olhos como se um Déjà vu (de outra coisa lida, ou até já pensada por nós mesmos, lá atrás)

–  Não se trata dos lugares-comuns, das máximas, da filosofia de botequim e daquele otimismo fuleiro de “auto-ajuda pra você se tornar um vencedor” gritados pela sociedade, pela família, pelo grupo de trabalho, todo santo dia, não! São impressões mais sutis: aquelas ideias, sensações ou observações que nos surpreendem, sem necessariamente precisarem ser coisa de outro mundo…

– Aquilo que é tão óbvio…que ignoramos.

“Nada é obscuro, exceto o que é evidente” já dizia o poeta medieval  Françoise Villon.

Explicarei melhor por um exemplo:

Günter Grass (1927-2015) foi um escritor alemão do séc. XX, um dos melhores, ganhou até o prêmio nobel em 99. Sua obra mais conhecida é o romance “O Tambor” (1959) retrato de uma Alemanha de antes, durante e após-segunda guerra, tudo isto visto pela ótica de Oskar, um garoto que não quer crescer e, por esta razão, quando completa três anos de idade, se joga da escada da adega de sua casa: como o acidente impossibilita seu crescimento, torna-se um anão e, posteriormente, corcunda pelo resto da vida.
Não cabe aqui fazer uma resenha da obra (mas recomendo de mais), só quero mostrar uma das passagens do livro que me chamou a atenção:
[…]; pois a luz atrai todos, mesmo os mais vulgares, enquanto a semi-escuridão só faz parar os eleitos.
– Günter Grass (“O Tambor”, 1959) [Tradução de Lúcio Alves]
Emily Dickinson (1830-1886) foi uma poeta norte-americana, uma das figuras literárias mais importantes do séc XIX, mas quase nulo o seu prestigio durante a vida: apenas nos anos posteriores a sua morte (lá pelo começo do séc. XX) é que teve o reconhecimento por parte da critica e do público. Com uma obra avançada para sua época, Emily possui vários poemas curtos, num tom que já antecipava o modernismo, eis um deles:
A manhã se dá a todos,
A noite, para alguns poucos;
A raros afortunados,
A luz da madrugada.
– Emily Dickinson [Tradução de Ivo Bender]

Nota-se que são dois gêneros distintos (e talvez nem tanto assim): romance e poesia, e entretanto dialogam! E isto com uma distância de mais ou menos 70 anos entre as duas produções (Emily morreu em 1886, sem publicar um livro: não há dados exatos quanto a data exata em que os poemas foram escritos; ela escreveu durante toda vida). Há uma afinidade, afinal. Dois escritores tão distintos em espaço e tempo se encontram numa mesma ideia (pálida e forte): a penumbra, a dubiedade que é um ‘estilo de vida’ para poucos. E que está presente, de forma visceral, embora acentuadamente distinta, em suas obras.

Este é o eterno retorno que quero destacar, o encontro da mesma verdade, seja na calma da fonte, ou no desespero do front. Sempre um novo (e o mesmo) tijolo a acrescentar.

Raul Lucas P. Costa (Baleia, a cadela)

 

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