Borboletas (Manoel de Barros)

Borboletas me convidaram a elas.
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza,
um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de
uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul.

AUTOAJUDA?

O tanto que a arte da escrita é completa, a ponto de englobar magistralmente todas outras formas de arte.

Escrevendo eu consigo ser heroi, bandido, amante, amigo. homem… mulher… sem eira nem beira, rapa pé…

Na escrita eu me perco e me reaproximo do infinito de distâncias intergaláticas que é ser eu, em mim.

No papel a relação é visceral, é troca constante. Choro, lágrimas, riachos e cachoeiras, nascentes e efervescentes. Bang bang constante, amores inabaláveis que causam diabetes literárias em leitores assíduos.

As letras podem ser traiçoeiras como o beijo de Judas, mas também podem te embalar como o colo da Maria virginal. Te embalam, te abraçam e te descrevem; te escrevem e reescrevem o que é ser tu em ti mesmo, e em nós também. E em vós. E neles. E nelas..

O escritor é apenas uma marionete, quem domina acorda, quem toma as rédeas, é o texto.

Escrever é como fazer a corte…

O texto se mostra aos poucos. Se revela. As vezes te engana, ludibria e tu reescreve, reescreve e repensa, reescreve e repensa, reescreve e repensa, repensa, repensa e no fim, na maioria das vezes, tu nem escreve.

O texto se escondeu meu caro Watson e cabe a você Escritor Jones, Pequeno Colombo, Descobridor dos Sete Mares, descobri-lo, tirá-lo de sua alcova e trazê-lo de volta ás paginas em branco da tua imaginação. Não desista

Isto, de Fernando Pessoa

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está de pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Autopsicografia, de Fernando Pessoa

Criado em 1931, o breve poema Autopsicografia foi publicado no ano a seguir na revista Presença, um importante veículo do Modernismo português.

Nos apenas doze versos o eu-lírico divaga sobre a relação que mantém consigo próprio e sobre a sua relação com a escrita. Na verdade, escrever no poema aparece como atitude norteadora do sujeito, como parte essencial da constituição da sua identidade.

O sujeito poético ao longo dos versos trata não só do momento da criação literária como também da recepção por parte do público leitor dando conta de todo o processo da escrita (criação – leitura – recepção) e incluindo todos os participantes da ação (autor-leitor).

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Dor elegante (Leminski

Poemas de Paulo Leminski

Cerca de 109 poemas de Paulo Leminski

AMOR

Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

Paulo Leminski

Nesta vida,
pode-se aprender três coisas de uma criança:
estar sempre alegre,
nunca ficar inativo
e chorar com força por tudo o que se quer.

Paulo Leminski

INCENSO FOSSE MÚSICA

isso de querer ser
exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

Paulo Leminski

lápide 1
epitáfio para o corpo

Aqui jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito,
são suas obras completas.

Paulo Leminski

Ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga

ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa

Paulo Leminski

Dor elegante

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra

Poesia

Pela luz dos olhos teus

Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só p’ra me provocar
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar.

Vinícius de Morais

Soneto do amigo

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica…

Clube do Gueto