Suspensão – Vinicius de Moraes

SUSPENSÃO

Rio de Janeiro , 1933

Fora de mim, fora de nós, no espaço, no vago
A música dolente de uma valsa
Em mim, profundamente em mim
A música dolente do teu corpo
E em tudo, vivendo o momento de todas as coisas
A música da noite iluminada.

O ritmo do teu corpo no meu corpo…
O giro suave da valsa longínqua, da valsa suspensa…
Meu peito vivendo teu peito
Meus olhos bebendo teus olhos, bebendo teu rosto…
E a vontade de chorar que vinha de todas as coisas.

Sursum – Vinicius de Moraes

SURSUM

Rio de Janeiro , 1935

Eu avanço no espaço as mãos crispadas, essas mãos juntas — lembras-te? — que o destino das coisas separou
E sinto vir se desenrolando no ar o grande manto luminoso onde os anjos entoam madrugadas…
A névoa é como o incenso que desce e se desmancha em brancas visões que vão subindo…
— Vão subindo as colunas do céu… (cisnes em multidão!) como os olhares serenos estão longe!…
Oh, vitrais iluminados que vindes crescendo nas brumas da aurora, o sangue escorre do coração dos vossos santos
Oh, Mãe das Sete Espadas… Os anjos passeiam com pés de lã sobre as teclas dos velhos harmônios…
Oh, extensão escura de fiéis! Cabeças que vos curvais ao peso tão leve da gaze eucarística
Ouvis? Há sobre nós um brando tatalar de asas enormes
O sopro de uma presença invade a grande floresta de mármore em ascensão.
Sentis? Há um olhar de luz passando em meus cabelos, agnus dei…
Oh, repousar a face, dormir a carne misteriosa dentro do perfume do incenso em ondas!
No branco lajedo os passos caminham, os anjos farfalham as vestes de seda
Homens, derramai-vos como a semente pelo chão! O triste é o que não pode ter amor…
Do órgão como uma colmeia os sons são abelhas eternas fugindo, zumbindo, parando no ar
Homens, crescei da terra como as sementes e cantai velhas canções lembradas…
Vejo chegar a procissão de arcanjos — seus olhos fixam a cruz da consagração que se iluminou no espaço
Cantam seus olhos azuis, tantum ergo! — de suas cabeleiras louras brota o incêndio impalpável da destinação
Queimam… alongam em êxtase os corpos de cera, e crepitando serenamente a cabeça em chamas
Voam — sobre o mistério voam os círios alados cruzando o ar um frêmito de fogo!…
Oh, foi outrora, quando nascia o sol — Tudo volta, eu dizia — e olhava o
[céu onde eu não via Deus suspenso sobre o caos como o impossível equilíbrio
Balançando o imenso turíbulo do tempo sobre a inexistência da humana serenidade.

Carta aos puros – Vinicius de Moraes

CARTA AOS PUROS

Rio de Janeiro , 1935

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.

Ó vós, homens iluminados a néon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem-amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antônimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito
E erigis a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que a esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.

Ó vós que vos negais à escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.

Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta
E achais que o bem do alheio é a melhor iguaria.

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra…
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.

Carne – Vinicius de Moraes

CARNE

Rio de Janeiro , 1933

Que importa se a distância estende entre nós léguas e léguas
Que importa se existe entre nós muitas montanhas?
O mesmo céu nos cobre
E a mesma terra liga nossos pés.
No céu e na terra é tua carne que palpita
Em tudo eu sinto o teu olhar se desdobrando
Na carícia violenta do teu beijo.
Que importa a distância e que importa a montanha
Se tu és a extensão da carne
Sempre presente?

Balada do Mangue – Vinicius de Moraes

BALADA DO MANGUE

Oxford , 1946

Pobres flores gonocócicas
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobre de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor
Não sois Lœlia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilingüidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé,
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
No entanto crispais sorrisos
Em vossas jaulas acesas
Mostrando o rubro das presas
Falando coisas do amor
E às vezes cantais uivando
Como cadelas à lua
Que em vossa rua sem nome
Rola perdida no céu…
Mas que brilho mau de estrela
Em vossos olhos lilases
Percebo quando, falazes,
Fazeis rapazes entrar!
Sinto então nos vossos sexos
Formarem-se imediatos
Os venenos putrefatos
Com que os envenenar
Ó misericordiosas!
Glabras, glúteas caftinas
Embebidas em jasmim
Jogando cantos felizes
Em perspectivas sem fim
Cantais, maternais hienas
Canções de caftinizar
Gordas polacas serenas
Sempre prestes a chorar.
Como sofreis, que silêncio
Não deve gritar em vós
Esse imenso, atroz silêncio
Dos santos e dos heróis!
E o contraponto de vozes
Com que ampliais o mistério
Como é semelhante às luzes
Votivas de um cemitério
Esculpido de memórias!
Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval:
Viveis a festa das flores
Pelo convés dessas ruas
Ancoradas no canal?
Para onde irão vossos cantos
Para onde irá vossa nau?
Por que vos deixais imóveis
Alérgicas sensitivas
Nos jardins desse hospital
Etílico e heliotrópico?
Por que não vos trucidais
Ó inimigas? ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!

Azul e Branco – Vinicius de Moraes

AZUL E BRANCO

Rio de Janeiro , 1946

Concha e cavalo-marinho 
Mote de Pedro Nava

I

Massas geométricas
Em pautas de música
Plástica e silêncio

Do espaço criado.

Concha e cavalo-marinho.

O mar vos deu em corola
O céu vos imantou

Mas a luz refez o equilíbrio.

Concha e cavalo-marinho.

Vênus anadiômena
Multípede e alada
Os seios azuis
Dando leite à tarde
Viu-vos Eupalinos
No espelho convexo
Da gota que o orvalho
Escorreu da noite
Nos lábios da aurora.

Concha e cavalo-marinho.

Pálpebras cerradas
Ao poder violeta
Sombras projetadas
Em mansuetude
Sublime colóquio
Da forma com a eternidade.

Concha e cavalo-marinho.

II

Na verde espessura
Do fundo do mar
Nasce a arquitetura.

Da cal das conchas
Do sumo das algas
Da vida dos polvos
Sobre tentáculos
Do amor dos pólipos
Que estratifica abóbadas
Da ávida mucosa
Das rubras anêmonas
Que argamassa peixes
Da salgada célula
De estranha substância
Que dá peso ao mar.

Concha e cavalo-marinho.

Concha e cavalo-marinho:
Os ágeis sinuosos
Que o raio de luz
Cortando transforma
Em claves de sol
E o amor do infinito
Retifica em hastes
Antenas paralelas
Propícias à eterna
Incursão da música.

Concha e cavalo-marinho.

III

Azul… Azul…

Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco

Concha…
e cavalo-marinho.

Canção (Vinicius de Moraes)

CANÇÃO

Rio de Janeiro , 1946

Não leves nunca de mim
A filha que tu me deste
A doce, úmida, tranqüila
Filhinha que tu me deste
Deixe-a, que bem me persiga
Seu balbucio celeste.
Não leves; deixa-a comigo
Que bem me persiga, a fim
De que eu não queira comigo
A primogênita em mim
A fria, seca, encruada
Filha que a morte me deu
Que vive dessedentada
Do leite que não é seu
E que de noite me chama
Com a voz mais triste que há
E pra dizer que me ama
E pra chamar-me de pai.
Não deixes nunca partir
A filha que tu me deste
A fim de que eu não prefira
A outra, que é mais agreste
Mas que não parte de mim.

Barcarola (Vinicius de Moraes)

BARCAROLA

Rio de Janeiro , 1946

Parti-me, trágico, ao meio
De mim mesmo, na paixão.
A amiga mostrou-me o seio
Como uma consolação.

Dormi-lhe no peito frio
De um sono sem sonhos, mas
A carne no desvario
Da manhã, roubou-me a paz.

Fugi, temeroso ao gesto
Do seu receio modesto
E cálido; enfim, depois

Pensando a vida adiante
Vi o remorso distante
Desse crime de nós dois.

Amor (Vinicius de Moraes)

AMOR

Rio de Janeiro , 2004

Vamos brincar, amor? vamos jogar peteca
Vamos atrapalhar os outros, amor, vamos sair correndo
Vamos subir no elevador, vamos sofrer calmamente e sem precipitação?
Vamos sofrer, amor? males da alma, perigos
Dores de má fama íntimas como as chagas de Cristo
Vamos, amor? vamos tomar porre de absinto
Vamos tomar porre de coisa bem esquisita, vamos
Fingir que hoje é domingo, vamos ver
O afogado na praia, vamos correr atrás do batalhão?
Vamos, amor, tomar thé na Cavé com madame de Sevignée
Vamos roubar laranja, falar nome, vamos inventar
Vamos criar beijo novo, carinho novo, vamos visitar N. S. do Parto?
Vamos, amor? vamos nos persuadir imensamente dos acontecimentos
Vamos fazer neném dormir, botar ele no urinol
Vamos, amor?
Porque excessivamente grave é a Vida.

A Esposa – Vinícius de Moraes

A ESPOSA

Rio de Janeiro , 1933

Às vezes, nessas noites frias e enevoadas
Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e mansos
Essa estranha visão de mulher calma
Surgindo do vazio dos meus olhos parados
Vem espiar minha imobilidade.

E ela fica horas longas, horas silenciosas
Somente movendo os olhos serenos no meu rosto
Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele.
Nada diz, nada pensa, apenas olha — e o seu olhar é como a luz
De uma estrela velada pela bruma.
Nada diz. Olha apenas as minhas pálpebras que descem
Mas que não vencem o olhar perdido longe.
Nada pensa. Virá e agasalhará minhas mãos frias
Se sentir frias suas mãos.
Quando a porta ranger e a cabecinha de criança
Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo
Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios
Sorrindo de um sorriso misterioso
E se irá num passo leve
Após o beijo leve e roçagante…

Eu só verei a porta que se vai fechando brandamente…

Ela terá ido, a esposa amiga, a esposa que eu nunca terei.

A ausente – Vinícius de Moraes

A AUSENTE

Rio de Janeiro , 1954

Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à ideia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro…
Amiga, última doçura
A tranquilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar…
Clube do Gueto