O Leão – Vinicius de Moraes

O LEÃO

Rio de Janeiro , 1970

(Inspirado em William Blake)

Leão! Leão! Leão!
Rugindo como o trovão
Deu um pulo, e era uma vez
Um cabritinho montês.

Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação

Tua goela é uma fornalha
Teu salto, uma labareda
Tua garra, uma navalha
Cortando a presa na queda.

Leão longe, leão perto
Nas areias do deserto.
Leão alto, sobranceiro
Junto do despenhadeiro.
Leão na caça diurna
Saindo a correr da furna.
Leão! Leão! Leão!
Foi Deus que te fez ou não?

O salto do tigre é rápido
Como o raio; mas não há
Tigre no mundo que escape
Do salto que o Leão dá.
Não conheço quem defronte
O feroz rinoceronte.
Pois bem, se ele vê o Leão
Foge como um furacão.

Leão se esgueirando, à espera
Da passagem de outra fera…
Vem o tigre; como um dardo
Cai-lhe em cima o leopardo
E enquanto brigam, tranquilo
O leão fica olhando aquilo.
Quando se cansam, o leão
Mata um com cada mão.

Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação!

Insônia – Marcio Jung

Já é meia noite
E eu ainda não tenho sono,
Os ponteiros do relógio
Movem-se lentamente.

Meus cabelos embranquecem
Enquanto a madrugada transcorre,
O silêncio é total.
Não há mais nada
De interessante para fazer.

Estou enfadado
De tanto olhar para as paredes.
Preciso movimentar-me
Balançar os ossos,
Isso deixa-nos loucos,
Acordar no meio da noite
E não ter nada para fazer.

Contudo muita coisa
Pode-se aprender prestando
Atenção ao silêncio da madrugada.

Otávio – Vinicius de Moraes

OTÁVIO

Rio de Janeiro , 2004

Torce a boca, olha as coisas abstrato
Percorre da varanda os quatro cantos
E tirando do corpo um carrapato
Imagina o romance mil e tantos…

Logo após olha o mundo e o vê morrendo
Sob a opressão tirânica do mal
E como um passarinho, vai correndo…
Escrever um tratado social

É amigo de um “braço” na poesia
E de um outro que é só filosofia
E de um terceiro, romancista: veja

Quanto livro a escrever ainda teria
O ditador Otávio de Faria
Sob o signo cristão da nova Igreja…

Ignorâncias Paternas – Mia Couto

Altas horas,

já secos cuspos e copos,

meu pai dizia:

vou reparar o teto.

 

E saía, para além da noite

por interditos caminhos.

 

Minha mãe

retorcia a alma

nas magras mãos.

 

No peito, não no ventre

a mãe vai gerando filhos.

 

Por trás dos cortinados

seu olhar se desfiava

no longo rosário da espera.

 

Cegos para as suas fadigas

nós, os filhos,

pedíamos que nos alonjasse o medo.

 

E a voz dela acontecia

como inundação do rio:

lavando águas e tristezas.

 

Pobre do vosso pai, supirava

Que pena ela dele sentia

que, no escuro, em vão procurava.

 

A nossa casa, de tão alta,

não poderia nunca ter telhado.

 

Filhos deitados,

medos dormindo:

antes do meu pai regressar

já minha mãe

tinha reparado

as telhas todas do mundo.

 

Saudade – Mia Couto

Que saudade

tenho de nascer.

 

Nostalgia

de esperar por um nome

como quem volta

à casa que nunca ninguém habitou.

 

Não precisais da vida, poeta

Assim falava a avó.

 

Deus vive por nós, sentenciava.

 

E regressava as orações.

 

A casa voltava

ao ventre do silêncio

e dava vontade de nascer.

 

Que saudade

tenho de Deus.

Cores de Parto – Mia Couto

O que eu vi,

à  nascença, foi o céu.

 

No rasgão da retina,

a desatada luz: o meu segundo oceano.

 

Aprendi a ser cego

antes de, em linha e cor,

o mundo se revelar.

 

O que depois vi,

ainda sem saber que via

foram as mãos.

 

Parteiros gestos

me ensinaram quanto,

das mãos,

a vida inteira vamos nascendo.

 

As mão foram,

assim, o segundo ventre.

 

Luz e mãos

moldaram a impossível fronteira

entre oceano e ventre.

 

Luz e mãos

me consolaram

da incurável solidão de ter nascido.

Repto – Vinicius de Moraes

REPTO

Rio de Janeiro , 1954

Vossos olhos raros
Jovens guerrilheiros
Aos meus, cavalheiros
Fazem mil reparos…
Se entendeis amor
Com vero brigar
Combates de olhar
Não quero propor.
Sei de um bom lugar
Onde contender
E haveremos de ver
Quem há de ganhar.
Não sirvo justar
Em pugna tão vã…
Que tal amanhã
Lutarmos de amar?
Em campos de paina
Pretendo reptar-vos
E em seguida dar-vos
Muita, muita faina
Guerra sem quartel
E tréguas só se
Pedires mercê
Com os olhos no céu.
Exaustão de gozo
Que tal seja a regra
E longa a refrega
Que aguardo ansioso
E caiba dizer-vos
Que inda vencedor
Sou, de vossos servos
O mais servidor…

Quatro sonetos de meditação – Vinicius de Moraes

QUATRO SONETOS DE MEDITAÇÃO

Oxford , 1946

I

Mas o instante passou. A carne nova
Sente a primeira fibra enrijecer
E o seu sonho infinito de morrer
Passa a caber no berço de uma cova.

Outra carne vírá. A primavera
É carne, o amor é seiva eterna e forte
Quando o ser que viver unir-se à morte
No mundo uma criança nascerá.

Importará jamais por quê? Adiante
O poema é translúcido, e distante
A palavra que vem do pensamento

Sem saudade. Não ter contentamento.
Ser simples como o grão de poesia.
E íntimo como a melancolia.

II

Uma mulher me ama. Se eu me fosse
Talvez ela sentisse o desalento
Da árvore jovem que não ouve o vento
Inconstante e fiel, tardio e doce.

Na sua tarde em flor. Uma mulher
Me ama como a chama ama o silêncio
E o seu amor vitorioso vence
O desejo da morte que me quer.

Uma mulher me ama. Quando o escuro
Do crepúsculo mórbido e maduro
Me leva a face ao gênio dos espelhos

E eu, moço, busco em vão meus olhos velhos
Vindos de ver a morte em mim divina:
Uma mulher me ama e me ilumina.

III

O efêmero. Ora, um pássaro no vale
Cantou por um momento, outrora, mas
O vale escuta ainda envolto em paz
Para que a voz do pássaro não cale.

E uma fonte futura, hoje primária
No seio da montanha, irromperá
Fatal, da pedra ardente, e levará
À voz a melodia necessária.

O efêmero. E mais tarde, quando antigas
Se fizerem as flores, e as cantigas
A uma nova emoção morrerem, cedo

Quem conhecer o vale e o seu segredo
Nem sequer pensará na fonte, a sós…
Porém o vale há de escutar a voz.

IV

Apavorado acordo, em treva. O luar
É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonâmbulo e sem fim.

Desço na noite, envolto em sono; e os braços
Como ímãs, atraio o firmamento
Enquanto os bruxos, velhos e devassos
Assoviam de mim na voz do vento.

Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe
Sem dimensão e sem razão me leva
Para o silêncio onde o Silêncio dorme

Enorme. E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito.

Princípio – Vinicius de Moraes

PRINCÍPIO

Rio de Janeiro , 1938

Na praia sangrenta a gelatina verde das algas — horizontes!
Os olhos do afogado à tona e o sexo no fundo (a contemplação na desagregação da forma…)
O mar… A música que sobe ao espírito, a poesia do mar, a cantata soturna dos três movimentos
O mar! (Não a superfície calma, mas o abismo povoado de peixes fantásticos e sábios…)

É o navio grego, é o navio grego desaparecido nas floras submarinas — Deus balança por um fio invisível a ossada do timoneiro sob o grande mastro
São as medusas, são as medusas dançando a dança erótica dos mucos vermelhos se abrindo ao beijo das águas
É a carne que o amor não mais ilumina, é o rito que o fervor não mais acende
É o amor um molusco gigantesco vagando pela revelação das luzes árticas.

O que se encontrará no abismo mesmo de sabedoria e de compreensão infinita
Ó pobre narciso nu que te deixaste ficar sobre a certeza de tua plenitude?
Nos peixes que da própria substância acendem o espesso líquido que vão atravessando
Terás conhecido a verdadeira luz da miséria humana que quer se ultrapassar.

É preciso morrer, a face repousada contra a água como um grande nenúfar partido
Na espera da decomposição que virá para os olhos cegos de tanta serenidade
Na visão do amor que estenderá as suas antenas altas e fosforescentes
Todo o teu corpo há de deliquescer e mergulhar como um destroço ao apelo do fundo.

Será a viagem e a destinação. Há correntes que te levarão insensivelmente e sem dor para cavernas de coral
Lá conhecerás os segredos da vida misteriosa dos peixes eternos
Verás crescerem olhos ardentes do volume glauco que te incendiarão de pureza
E assistirás a seres distantes que se fecundam à simples emoção do amor.

Encontrar, eis o destino. Aves brancas que desceis aos lagos e fugis! Oh, a covardia das vossas asas!
É preciso ir e se perder no elemento de onde surge a vida.
Mais vale a árvore da fonte que a árvore do rio plantada segundo a corrente e que dá seus frutos a seu tempo…
Deixai morrer o desespero nas sombras da ideia de que o amor pode não vir.

Na praia sangrenta a velha embarcação negra e desfeita — o mar a lançou talvez na tempestade!
Eu — e casebres de pescadores eternamente ausentes…
O mar! o vento tangendo as águas e cantando, cantando, cantando
Na praia sangrenta entre brancas espumas e horizontes…

Sombra e luz – Vinicius de Moraes

SOMBRA E LUZ

Rio de Janeiro , 1946

I

Dança Deus!
Sacudindo o mundo
Desfigurando estrelas
Afogando o mundo
Na cinza dos céus
Sapateia, Deus
Negro na noite
Semeando brasas
No túmulo de Orfeu.

Dança, Deus! dança
Dança de horror
Que a faca que corta
Dá talho sem dor.
A dama Negra
A Rainha Euterpe
A Torre de Magdalen
E o Rio Jordão
Quebraram muros
Beberam absinto
Vomitaram bile
No meu coração.

E um gato e um soneto
No túmulo preto
E uma espada nua
No meio da rua
E um bezerro de ouro
Na boca do lobo
E um bruto alifante
No baile da Corte
Naquele cantinho
Cocô de ratinho
Naquele cantão
Cocô de ratão.

Violino moço fino
– Quem se rir há de apanhar.

Violão moço vadio
– Não sei quem apanhará.

II

Munevada glimou vestassudente.

Desfazendo-se em lágrimas azuis
Em mistérios nascia a madrugada
E o vampiro Nosferatu
Descia o rio
Fazendo poemas
Dizendo blasfêmias
Soltando morcegos
Bebendo hidromel
E se desencantava, minha mãe!

Ficava a rua
Ficava a praia
No fim da praia
Ficava Maria
No meio de Maria
Ficava uma rosa
Cobrindo a rosa
Uma bandeira
Com duas tíbias
E uma caveira.

Mas não era o que queria
Que era mesmo o que eu queria?
“Eu queria uma casinha
Com varanda para o mar
Onde brincasse a andorinha
E onde chegasse o luar
Com vinhas nessa varanda
E vacas na vacaria
Com vinho verde e vianda
Que nem Carlito queria.”

Nunca mais, nunca mais!
As luzes já se apagavam
Os mortos mortos de frio
Se enrolavam nos sudários
Fechavam a tampa da cova
Batendo cinco pancadas.

Que fazer senão morrer?

III

Pela estrada plana, toc-toc-toc
As lágrimas corriam.
As primeiras mulheres
Saíam toc-toc na manhã
O mundo despertava! em cada porta
Uma esposa batia toc-toc
E os homens caminhavam na manhã.
Logo se acenderão as forjas
Fumarão as chaminés
Se caldeará o aço da carne
Em breve os ferreiros toc-toc
Martelarão o próprio sexo
E os santos marceneiros roc-roc
Mandarão berços para Belém.
Ouve a cantiga dos navios
Convergindo dos temporais para os portos
Ouve o mar
Rugindo em cóleras de espuma
Have mercy on me O Lord
Send me Isaias
I need a poet
To sing me ashore.

Minha luz ficou aberta
Minha cama ficou feita
Minha alma ficou deserta
Minha carne insatisfeita.

Clube do Gueto