Acontecimento – Vinicius de Moraes

ACONTECIMENTO

Rio de Janeiro , 2004

Haverá na face de todos um profundo assombro
E na face de alguns, risos sutis cheios de reserva
Muitos se reunirão em lugares desertos
E falarão em voz baixa em novos possíveis milagres
Como se o milagre tivesse realmente se realizado
Muitos sentirão alegria
Porque deles é o primeiro milagre
Muitos sentirão inveja
E darão o óbolo do fariseu com ares humildes
Muitos não compreenderão
Porque suas inteligências vão somente até os processos
E já existem nos processos tantas dificuldades…
Alguns verão e julgarão com a alma
Outros verão e julgarão com a alma que eles não têm
Ouvirão apenas dizer…
Será belo e será ridículo
Haverá quem mude como os ventos
E haverá quem permaneça na pureza dos rochedos.
No meio de todos eu ouvirei calado e atento, comovido e risonho
Escutando verdades e mentiras
Mas não dizendo nada.
Só a alegria de alguns compreenderem bastará
Porque tudo aconteceu para que eles compreendessem
Que as águas mais turvas contêm às vezes as pérolas mais belas.

A vida vivida – Vinicius de Moraes

A VIDA VIVIDA

Rio de Janeiro , 1938

Quem sou eu senão um grande sonho obscuro em face do Sonho
Senão uma grande angústia obscura em face da Angústia
Quem sou eu senão a imponderável árvore dentro da noite imóvel
E cujas presas remontam ao mais triste fundo da terra?

De que venho senão da eterna caminhada de uma sombra
Que se destrói à presença das fortes claridades
Mas em cujo rastro indelével repousa a face do mistério
E cuja forma é prodigiosa treva informe?

Que destino é o meu senão o de assistir ao meu Destino
Rio que sou em busca do mar que me apavora
Alma que sou clamando o desfalecimento
Carne que sou no âmago inútil da prece?

O que é a mulher em mim senão o Túmulo
O branco marco da minha rota peregrina
Aquela em cujos braços vou caminhando para a morte
Mas em cujos braços somente tenho vida?

O que é o meu amor, ai de mim! senão a luz impossível
Senão a estrela parada num oceano de melancolia
O que me diz ele senão que é vã toda a palavra
Que não repousa no seio trágico do abismo?

O que é o meu Amor? senão o meu desejo iluminado
O meu infinito desejo de ser o que sou acima de mim mesmo
O meu eterno partir da minha vontade enorme de ficar
Peregrino, peregrino de um instante, peregrino de todos os instantes?

A quem respondo senão a ecos, a soluços, a lamentos
De vozes que morrem no fundo do meu prazer ou do meu tédio
A quem falo senão a multidões de símbolos errantes
Cuja tragédia efêmera nenhum espírito imagina?

Qual é o meu ideal senão fazer do céu poderoso a Língua
Da nuvem a Palavra imortal cheia de segredo
E do fundo do inferno delirantemente proclamá-los
Em Poesia que se derrame como sol ou como chuva?

O que é o meu ideal senão o Supremo Impossível
Aquele que é, só ele, o meu cuidado e o meu anelo
O que é ele em mim senão o meu desejo de encontrá-lo
E o encontrando, o meu medo de não o reconhecer?

O que sou eu senão ele, o Deus em sofrimento
O temor imperceptível na voz portentosa do vento
O bater invisível de um coração no descampado…
O que sou eu senão Eu Mesmo em face de mim?

Desde sempre – Vinicius de Moraes

DESDE SEMPRE

Rio de Janeiro , 1933

Na minha frente, no cinema escuro e silencioso
Eu vejo as imagens musicalmente rítmicas
Narrando a beleza suave de um drama de amor.
Atrás de mim, no cinema escuro e silencioso
Ouço vozes surdas, viciadas
Vivendo a miséria de uma comédia de carne.
Cada beijo longo e casto do drama
Corresponde a cada beijo ruidoso e sensual da comédia
Minha alma recolhe a carícia de um
E a minha carne a brutalidade do outro.
Eu me angustio.
Desespera-me não me perder da comédia ridícula e falsa
Para me integrar definitivamente no drama.
Sinto a minha carne curiosa prendendo-me às palavras implorantes
Que ambos se trocam na agitação do sexo.
Tento fugir para a imagem pura e melodiosa
Mas ouço terrivelmente tudo
Sem poder tapar os ouvidos.
Num impulso fujo, vou para longe do casal impudico
Para somente poder ver a imagem.

Mas é tarde. Olho o drama sem mais penetrar-lhe a beleza
Minha imaginação cria o fim da comédia que é sempre o mesmo fim
E me penetra a alma uma tristeza infinita
Como se para mim tudo tivesse morrido.

Copacabana – Vinicius de Moraes

COPACABANA

Los Angeles , 1948

Esta é Copacabana, ampla laguna
Curva e horizonte, arco de amor vibrando
Suas flechas de luz contra o infinito.
Aqui meus olhos desnudaram estrelas
Aqui meus braços discursaram à lua
Desabrochavam feras dos meus passos
Nas florestas de dor que percorriam.
Copacabana, praia de memórias!
Quantos êxtases, quantas madrugadas
Em teu colo marítimo!

– Esta é a areia

Que eu tanto enlameei com minhas lágrimas
– Aquele é o bar maldito. Podes ver
Naquele escuro ali? É um obelisco
De treva – cone erguido pela noite
Para marcar por toda a eternidade
O lugar onde o poeta foi perjuro.
Ali tombei, ali beijei-te ansiado
Como se a vida fosse terminar
Naquele louco embate. Ali cantei
À lua branca, cheio de bebida
Ali menti, ali me ciliciei
Para gozo da aurora pervertida.

Sobre o banco de pedra que ali tens
Nasceu uma canção. Ali fui mártir
Fui réprobo, fui bárbaro, fui santo
Aqui encontrarás minhas pegadas
E pedaços de mim por cada canto.
Numa gota de sangue numa pedra
Ali estou eu. Num grito de socorro
Entreouvido na noite, ali estou eu.
No eco longínquo e áspero do morro
Ali estou eu. Vês tu essa estrutura
De apartamento como uma colmeia
Gigantesca? em muitos penetrei
Tendo a guiar-me apenas o perfume
De um sexo de mulher a palpitar
Como uma flor carnívora na treva.
Copacabana! ah, cidadela forte
Desta minha paixão! a velha lua
Ficava de seu nicho me assistindo
Beber, e eu muita vez a vi luzindo
No meu copo de uísque, branca e pura
A destilar tristeza e poesia.
Copacabana! réstia de edifícios
Cujos nomes dão nome ao sentimento!
Foi no Leme que vi nascer o vento
Certa manhã, na praia. Uma mulher
Toda de negro no horizonte extremo
Entre muitos fantasmas me esperava:
A moça dos antúrios, deslembrada
A senhora dos círios, cuja alcova
O piscar do farol iluminava
Como a marcar o pulso da paixão
Morrendo intermitentemente. E ainda
Existe em algum lugar um gesto alto,
Um brilhar de punhal, um riso acústico
Que não morreu. Ou certa porta aberta
Para a infelicidade: inesquecível
Frincha de luz a separar-me apenas
Do irremediável. Ou o abismo aberto
Embaixo, elástico, e o meu ser disperso
No espaço em torno, e o vento me chamando
Me convidando a voar… (Ah, muitas mortes
Morri entre essas máquinas erguidas
Contra o Tempo!) Ou também o desespero
De andar como um metrônomo para cá
E para lá, marcando o passo do impossível
À espera do segredo, do milagre
Da poesia.

Tu, Copacabana,
Mais que nenhuma outra foste a arena
Onde o poeta lutou contra o invisível
E onde encontrou enfim sua poesia
Talvez pequena, mas suficiente
Para justificar uma existência
Que sem ela seria incompreensível.

Cinepoema – Vinicius de Moraes

CINEPOEMA

rio de Janeiro , 1954

O preto no branco
Manuel Bandeira

O preto no banco
A branca na areia
O preto no banco
A branca na areia
Silêncio na praia
De Copacabana.
A branca no branco
Dos olhos do preto
O preto no banco
A branca no preto
Negror absoluto
Sobre um mar de leite.
A branca de bruços
O preto pungente
O mar em soluços
A espuma inocente
Canícula branca
Pretidão ardente.
A onda se alteia
Na verde laguna
A branca se enfuna
Se afunda na areia
O colo é uma duna
Que o sol incendeia.
O preto no branco
Da espuma da onda
A branca de flanco
Brancura redonda
O preto no banco
A gaivota ronda.
O negro tomado
Da linha do asfalto
O espaço imantado:
De súbito um salto
E um grito na praia
De Copacabana.
Pantera de fogo
Pretidão ardente
Onda que se quebra
Violentamente
O sol como um dardo
Vento de repente.
E a onda desmaia
A espuma espadana
A areia ventada
De Copacabana
Claro-escuro rápido
Sombra fulgurante.
Luminoso dardo
O sol rompe a nuvem
Refluxo tardo
Restos de amarugem
Sangue pela praia
De Copacabana…

Cemitério Marinho – Vinicius de Moraes

CEMITÉRIO MARINHO

Rio de Janeiro , 2004

Tal como anjos em decúbito
A conversar com o céu baixinho
Existem cerca de cem túmulos
Num lindo cemiteriozinho
Que eu, a passeio, descobri
Um dia em Sidi Bou Said.

Mal defendidos por uns muros
Erguidos ao sabor da morte
Eu nunca vi mortos tão puros
Mortos assim com tanta sorte
As lajes de cal como túnicas
Brancas, e árabes; não púnicas.

Sim, porque cemiteriozinho
Nunca se viu assim tão árabe
Feito o beduíno que é sozinho
Ante o deserto que lhe cabe
E mudo em face do horizonte
Sem uma sombra que o confronte.

Pequenos paralelepípedos
Fendidos uns, conforme o sexo
Eis suas lápides: antípodas
Das que se vêem num cemitério
De gente do nosso pigmento:
Os nossos mortos de cimento.

Quem se deixar de tarde ali
Isento de mágoa ou conflito
A olhar o mar (sem Valéry!)
Como um espelho de infinito
E o céu como um anti-recôncavo:
Como o convexo de um côncavo

Acabará (comigo deu-se!)
Ouvindo os mortos cochicharem
Alegremente, eles e Deus
Mas não o nosso: o Deus dos árabes
Que não fez Sidi Bou Said
Para os prazeres de André Gide

Mas sim porque a vida segue
E o tempo pára, e a morte é um canto
Porque morrer é coisa alegre
Para quem vive e sofre tanto
Como no cemiteriozinho, ali
Ao céu de Sidi Bou Said.

Sidi Bou Said, outubro de 1963
Florença, novembro de 1963

Testamento da Mulher Suspensa – Mia Couto

Eis o que vos deixo:
um leve gosto
de renascer lembrada.

E um falso desejo de ser esquecida.

Que eu virei
buscar a espuma da onda
que ficou para sempre por quebrar.
Beleza não me bastou:
o que quis ser
foram cetins de fogo,
pétalas de cinza depois do abraço.

Nem flor invejei:
o que mais ilumina
vem de um oceano escuro.
Esperanças tive: todas naufragaram
ante cansaços e remorsos.
Procurei ilhas e mares:

só havia viagens,
travessias de água
nos olhos de quem amei.
Num mundo com remédios parcos
não clamei bravuras.

Injusto é viver
em perecível ser.

Menina,
aprendi a desenrolar tapetes
em rasos pátios voadores,
varandas maiores que o mundo
onde o tempo à nossa mão vinha beber.
Meus pequenos dedos
rasgaram céus,
mas o ensejo era largo:
em mim secaram
lembranças de um mar antigo.

Assim,
tudo o que sou
já fui
na criança que sonhou ser tudo.
Meus lutos, sem emenda, carrego:
viuvez de mulher
não vem de marido.

Vem do amor não mais sonhado.

Com a fragilidade de um riso
enfrentei ruínas e derrotas
e apenas a vida, calada, me calou

 

Tudo falei com meus amantes.
Perante o amor, porém, não tive palavra.
O que da vida me restou:
pegadas alheias sob meus pés molhados.
Viver sabe quem ainda vai viver.


Deixo-me,
mulher que quase foi,
à mulher que nunca fui.

O Dia Surge da Água – Carlos Drummond de Andrade

O chafariz da Aurora
faz nascer o sol.
A água é toda ouro
desse nome louro.

O chafariz da Aurora,
na iridescência trêmula,
bem mais que um tesouro,
é prisma sonoro,
campainha abafada
em tliz cliz de espuma,
aérea pancada
súbita
na pedra lisa,
frígida espadana,
tece musicalmente
a áurea nívea rósea
vestimenta do dia líquido.

Deixa fluir a aurora,
sendo um tão pobre
chafariz do povo.

Natureza humana – Vinicius de Moraes

NATUREZA HUMANA

Rio de Janeiro , 2004

Cheguei. Sinto de novo a natureza
Longe do pandemônio da cidade
Aqui tudo tem mais felicidade
Tudo é cheio de santa singeleza

Vagueio pela múrmura leveza
Que deslumbra de verde e claridade
Mas nada. Resta vívida a saudade
Da cidade em bulício e febre acesa

Ante a perspectiva da partida
Sinto que me arranca algo da vida
Mas quero ir. E ponho-me a pensar

Que a vida é esta incerteza que em mim mora
A vontade tremenda de ir-me embora
E a tremenda vontade de ficar.

O Mágico – Vinicius de Moraes

O MÁGICO

Rio de Janeiro , 1938

Diante do mágico a multidão boquiaberta se esquece. Não há mais lugar na Grande Praça: as ruas adjacentes se cobrem de uma negra onda humana. Em todas as casas a curiosidade do mistério abriu todas as janelas. A espantosa fachada da Catedral se apinha de garotos acrobatas que se penduram nos relevos como anjos. É talvez Paris do Terror, porque os velhos pardieiros como que se inclinam para o espetáculo incessante e na porta das hospedarias há velhas tabuletas pendentes, mas também pode ser uma vila alemã, onde as campainhas das lojas tilintam alegremente, ou mesmo o Rio do tempo dos Vice-Reis, com os seus Capitães-Mores traficando em suas redes e fitando duramente o artista.

O mágico está sobre o antigo pelourinho ou forca ou guilhotina por onde muitas gerações passaram.

As abas da sua casaca vão ao vento — é uma negra andorinha saltitante! As brancas mãos se misturam em ondulantes movimentos de dança.

É de tarde, hora do trabalho. Na primeira fila estão os senhores e na última os escravos do dever. Os senhores procuram adivinhar, os escravos procuram rir. O mágico se diverte com a multidão, a multidão se diverte com o mágico. Um filósofo e um dançarino perdidos confundem a multidão com o mágico e aguardam.

Todos se divertem à sua maneira.

*

Silêncio, o mágico fala, todos escutam! “Ahora, presentaré el famoso entretenimiento de las palomas.” A dama oriental faz uma pirueta ágil e mostra ao público a cartola milagrosa. O mágico faz passes, cobre a cartola com um lenço vermelho de seda. “Un dos y…!” voam pombas brancas para o céu de safira. A multidão olha para cima, as mãos aparando o sol. O movimento prossegue. Toda a praça, toda a rua, toda a cidade olha para cima, o subúrbio olha para cima, os camponeses olham para cima. “O que estará para acontecer? Dizem que um tufão caminha do levante!” Acendem-se ícones nas isbás da estepe russa, fazem-se procissões em Portugal. O chefe guerreiro da tribo vê o sinal da guerra no céu, rugem os trocanos. O mágico joga a cartola para a multidão, que aplaude. O poeta apanha a cartola e recolhe nela o encantamento que se processou. As pombas invisíveis voltam, o poeta as contempla. Só elas são o Íntimo da Vida.

*

E o tufão cai de súbito, vindo do Levante. Os garotos escorrem pelas colunas, formigam pelas escadarias, escondem-se nos nichos. O povo se escoa como uma água lodosa pelas portas das casas que abrem e fecham. A um gesto de guignol todas as janelas se retraem e após um minuto de rumor intenso desce uma eternidade de silêncio. Uma procelária passando em busca do mar só vê da cidade as suas torres acima do grande nevoeiro. Os rios rugem, as pontes desabam, nas sarjetas boiam cadáveres de crianças ciganas. O dilúvio leva a música do mágico, leva as pinturas do mágico, leva as bonecas do mágico, só não leva o mágico na torrente.
O poeta sobe ao palanque, castiga o mágico, possui a mulher do mágico, apresenta ao alto a cabeça e o coração, onde surgem e desaparecem pombas brancas e onde a realidade efêmera floresce no mistério perpétuo.
Mágico do inescrutável, o poeta aguarda o raio de Deus.

Clube do Gueto