Azul sobre Amarelo, Maravilha e Roxo – Adélia Prado

Desejo, como quem sente fome ou sede,
um caminho de areia margeado de boninas,
onde só cabem a bicicleta e seu dono.
Desejo, como uma funda saudade
de homem ficado órfão pequenino,
um regaço e o acalanto, a amorosa tenaz de uns dedos
para um forte carinho em minha nuca.
Brotam os matinhos depois da chuva,
brotam os desejos do corpo.
Na alma, o querer de um mundo tão pequeno,
como o que tem nas mãos o Menino Jesus de Praga.

Antes do Nome – Adélia Prado

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o ‘do’, o ‘aliás’,
o ‘o’, o ‘porém’ e o ‘que’, esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é o Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

Poema Esquisito – Adélia Prado

Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
Ninguém tem culpa.
Meu pai. Minha mãe descasaram seus fardos,
não existe mais modo
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão
Nasceu lá, pois quis um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.                                                                                                                                        Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim respondem
tenazes e duros,
Porque o zelo do espírito é sem meiguices,
Ôôôôi fia.

Ilha do Governador – Vinicius de Moraes

ILHA DO GOVERNADOR

Rio de Janeiro , 1935

Esse ruído dentro do mar invisível são barcos passando
Esse ei-ou que ficou nos meus ouvidos são os pescadores esquecidos
Eles vêm remando sob o peso de grandes mágoas
Vêm de longe e murmurando desaparecem no escuro quieto.
De onde chega essa voz que canta a juventude calma?
De onde sai esse som de piano antigo sonhando a Berceuse?
Por que vieram as grandes carroças entornando cal no barro molhado?

Os olhos de Susana eram doces mas Eli tinha seios bonitos
Eu sofria junto de Susana — ela era a contemplação das tardes longas
Eli era o beijo ardente sobre a areia úmida.
Eu me admirava horas e horas no espelho.

Um dia mandei: “Susana, esquece-me, não sou digno de ti — sempre teu…”
Depois, eu e Eli fomos andando… — ela tremia no meu braço
Eu tremia no braço dela, os seios dela tremiam
A noite tremia nos ei-ou dos pescadores…

Meus amigos se chamavam Mário e Quincas, eram humildes, não sabiam
Com eles aprendi a rachar lenha e ir buscar conchas sonoras no mar fundo
Comigo eles aprenderam a conquistar as jovens praianas tímidas e risonhas.
Eu mostrava meus sonetos aos meus amigos — eles mostravam os grandes olhos abertos
E gratos me traziam mangas maduras roubadas nos caminhos.

Um dia eu li Alexandre Dumas e esqueci os meus amigos.
Depois recebi um saco de mangas
Toda a afeição da ausência…

Como não lembrar essas noites cheias de mar batendo?
Como não lembrar Susana e Eli?
Como esquecer os amigos pobres?
Eles são essa memória que é sempre sofrimento
Vêm da noite inquieta que agora me cobre
São o olhar de Clara e o beijo de Carmem
São os novos amigos, os que roubaram luz e me trouxeram.
Como esquecer isso que foi a primeira angústia
Se o murmúrio do mar está sempre nos meus ouvidos
Se o barco que eu não via é a vida passando
Se o ei-ou dos pescadores é o gemido de angústia de todas as noites?

Idade Média – Vinicius de Moraes

IDADE MÉDIA

Rio de Janeiro , 1938

Faze com que tua boca seja para mim água e não vinho
E faze com que para mim teus seios peras e não cidras…
Algum dia no teu ventre que eu vejo se estender como uma branca terra fecunda em lírios
Deixarei a semente de gigantes arianos que atravessarão silenciosamente o Volga
E que as cabeceiras de seda voando, as lanças de ouro voando, cavalgarão doidamente contra a lua…

História de alma – Vinicius de Moraes

HISTÓRIA DE ALMA

Rio de Janeiro , 2004

Meia-noite. Frio. Frio em tudo
E mais frio que em tudo, frio na Alma
A Noite grande e aberta… a Alma grande e aberta…
Infinitamente frias…

No alto a noite má seguia a Alma que vagava
Enregelada e nua entre todas as almas
Seguia a Alma presa
Presa por todos os lados
A Alma caminhava e a noite caminhava com ela
A Alma fugia e a noite perseguia a Alma
E a Alma parava. Então a noite também parava
E mandava um frio mais frio do que a Alma

E a Alma já fria tornava a caminhar
E a noite vinha e perseguia a Alma
E a Alma parava… e a Alma parava…
E chorando ajoelhada pedia perdão…

Elegia de Paris – Vinicius de Moraes

ELEGIA DE PARIS

Rio de Janeiro , 2004

Maintenant j’ai trop vu. Neste momento
Eu gostaria de esquecer as prostitutas de Amsterdam
Em seus mostruários, e os modelos
De Dior, comendo croque-monsieur com gestos
Japoneses, na terrasse do Hotel-des-Théâtres. O que
Eu gostaria agora era de ver-te surgir no claustro do meu sonho
Como uma tarde finda. Ah,
nsia de rever-te! ou de rever
O brilho de uma abotoadura de ouro – lembras-te? – caída no ralo da pia do velho.

St. Thomas d’Aquin… há quanto tempo?
Não sei mais! Entrementes
A morte fez-se extraordinariamente próxima e por vezes
Tão doce, tão…Tem uma face amiga –
É a tua face, amiga?

De madrugada, na alta serra – Vinicius de Moraes

DE MADRUGADA, NA ALTA SERRA…

Rio de Janeiro , 2004

De madrugada, na alta serra
Desencanta-se o Príncipe da Terra
De madrugada, na alta serra
Ouve-se a voz que aterra
O canto pressago, frio como um sorriso
Do Príncipe da Terra

Disse-me o vento
O vento uivante, o vento uivante
Na minha insônia em sangue
De madrugada, na alta serra
Desencanta-se o Príncipe da Terra
E as mulheres, geladas
Abandonam as casas, criam asas
Para ir ouvir o Príncipe da Terra
Cujo canto é frio como um sorriso.

Possui-as o Príncipe da Terra
Na alta serra
O grande invertido, o mágico, o louco
O amante sem sexo
Cuja cabeleira é de platina
E que tem pupilas brancas

Ah, quem me dirá – oh, desvario
Da minha poesia no fundo do espelho da bruma
Que o vento uivante, o vento uivante
Não seja a voz do Príncipe da Terra
Cantando o amor e a morte
Na alta serra?

Eu sou o Príncipe da Terra
O inutilmente desaventurado
Eu sou o Príncipe Indiferente
O deus do crime, o bem-amado
Eu sou o Príncipe Altair
Sexo fui, castrado
Plantado, tornado árvore, raiz
Garra de ódio no ventre da morte
Hoje sou o Príncipe Eunuco

De vos conseguir indesejados
Vossa boca para os meus lábios mecânicos
Vossos dedos para os meus seios de pedra
Vosso ventre para a minha espada de aço
Ó fazedoras de espasmos
Eu sou o Príncipe da Terra
Ó súcubo Altair
Cerzi a traição inconsciente
Alucinai!
De vós nascerá a dor invisível
Que deita lama no coração
Eu sou o Príncipe Impotente
O Cão hermafrodita
Meu beijo é veneno em vossos dentes
Mordei!
Percorrei mundos, transportai a morfina nas horas
Plantai espelhos súbitos de morte nas almas.

Orfandade – Adélia Prado

Meu Deus
me dá cinco anos.
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dá a negrinha Fia pra eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,                                                                                                                                                                            meu pai.

Clandestino – Mia Couto

Na penumbra da tarde,
o mundo morto,
a meu passo, despertava.
Não era o amor
que eu procurava.                                                                                                                                                      Buscava o amar.

Na casa em ruínas,
te despias
para que me deixasse cegar.

 

Voz transpirada,
suplicavas que te chamasse no escuro.
Em ti, porém,
eu amava
quem não tem nome.

 

Na casa arruinada
te amei e te perdi
como a ave que voa

Clube do Gueto