A Santa de Sabará – Vinicius de Moraes

A SANTA DE SABARÁ

Rio de Janeiro , 2004

À gravadora chilena Graciela Fuenzalida
que trocou o mundo por Sabará

A um grito da Ponte Velha
Existe a “Pensão das Gordas”
(Cantou-as Mário de Andrade!)
Em Sabará. Na alpendrada
Sobre o rio que escorrega
A pensão mira a cidade
Ladeira acima. Na Páscoa
As quaresmeiras da serra
São manchas roxas de mágoa
E de manhã bem cedinho
A névoa pousa na terra
Como uma anágua de linho.
A cidade se espreguiça
Nas cores do casario
Que vive a pular carniça
Nas rampas de beira-rio.
E é doce vê-la sorrindo
Aos anjos do Aleijadinho
Que na portada do Carmo
Com bochechas inchadas
Assopram, de tanto frio.
Há paz na velha cidade
Uma paz de fazer longe…
A não ser na identidade
De certa dona chilena
Uma de rosto de monja
Corpo seco, tez serena
E que, na “Pensão das Gordas”
Onde há seis anos assiste
Desde o momento em que acorda
Vive, e nem sabe que existe
Entalhando na madeira
As horas mais dolorosas
Da Paixão de Jesus Cristo.
Atende por Graciela
Mas não atende a ninguém
Que não tenha como ela
A grande paixão do bem.
Sempre fechada em seu quarto
Mesmo à feição de uma freira
As suas dores do parto
Doem na carne de madeira
Onde ela entalha o fervor
De tudo o que há de mais casto
O rebanho e o bom pastor
O burrinho no seu pasto.
E às vezes, na nostalgia
Quem sabe, do mundo fora
Grava com luzes de aurora
Com milagres da poesia.

O viajante que passa
Itinerante por lá
Não se espante se, na aurora
Ou à luz crepuscular
Vir o vulto iluminado
De um belo arcanjo pousado
Guardando a casa onde mora
A santa de Sabará.

A que há de vir – Vinicius de Moraes

A QUE HÁ DE VIR

Rio de Janeiro , 1933

Aquela que dormirá comigo todas as luas
É a desejada de minha alma.
Ela me dará o amor do seu coração
E me dará o amor da sua carne.
Ela abandonará pai, mãe, filho, esposo
E virá a mim com os peitos e virá a mim com os lábios
Ela é a querida da minha alma
Que me fará longos carinhos nos olhos
Que me beijará longos beijos nos ouvidos
Que rirá no meu pranto e rirá no meu riso.
Ela só verá minhas alegrias e minhas tristezas
Temerá minha cólera e se aninhará no meu sossego
Ela abandonará filho e esposo
Abandonará o mundo e o prazer do mundo
Abandonará Deus e a Igreja de Deus
E virá a mim me olhando de olhos claros
Se oferecendo à minha posse
Rasgando o véu da nudez sem falso pudor
Cheia de uma pureza luminosa.
Ela é a amada sempre nova do meu coração
Ela ficará me olhando calada
Que ela só crerá em mim
Far-me-á a razão suprema das coisas.
Ela é a amada da minha alma triste
É a que dará o peito casto
Onde os meus lábios pousados viverão a vida do seu coração.

Ela é a minha poesia e a minha mocidade
É a mulher que se guardou para o amado de sua alma
Que ela sentia vir porque ia ser dela e ela dele.

Ela é o amor vivendo de si mesmo.

É a que dormirá comigo todas as luas
E a quem eu protegerei contra os males do mundo.

Ela é a anunciada da minha poesia
Que eu sinto vindo a mim com os lábios e com os peitos
E que será minha, só minha, como a força é do forte e a poesia é do poeta.

A primeira namorada – Vinicius de Moraes

A PRIMEIRA NAMORADA

Rio de Janeiro , 2004

Tu me beijaste, Coisa Triste
Justo durante a elevação
Depois, impávida, partiste
A receber a comunhão.
Tinhas apenas seis ou sete
E isso ou pouco mais eu tinha
E tinha mais: tinhas topete!
– Por que partiste, Coisa Minha?

Foi numa missa da matriz
De Botafogo. Eu disse: “Cruz!
Como é que ela vai agora
Comer o corpo de Jesus…”
Mas tu fizeste, Coisa Linda
Sem a menor hipocrisia
É que eu nem suspeitava ainda
Da tua santropofagia…

Porque nas classes do colégio
Onde a meu lado te sentavas
Tornou-se diário o sacrilégio
Durante as preces: me buscavas.
E o olho cândido na mestra
Que iniciava a aula depois
Acompanhavas a palestra
Cuidando apenas de nós dois.

Mais tarde a gente revezava
E eu procurava tua calcinha
E longamente acariciava
Tua coisinha, Coisa Minha.
Nós ficávamos sérios, sérios
A face rubra mas atenta
– A vida tem tantos mistérios…
Tem ou não tem, Coisa Sardenta?

Depois casei, não com ela…
Mas com meu segundo amor
A mãe de Susana, a bela
E de Pedro, o mergulhador
Morávamos bem ali
Junto à ladeira sombria
Era tanta a poesia
Que quase, quase morri.

As mulheres vinham ver-nos
No nosso ninho de amor
Morte na mira de Vênus
Oxum querendo Xangô
E eu, embora só cuidasse
De amar-te (vê se conferes!)
Era um pobre Lovelace…
Não resistia às mulheres.

Mas foste (e fui) tão feliz
Nos nossos grandes momentos
Que não lamento o que fiz
Nem tenho arrependimentos.
Deste-me dois filhos lindos
E todo o amor que tens: eu
Embora às vezes mentindo
Nunca dava o que era só teu.

A Porta – Vinicius de Moraes

A PORTA

Rio de Janeiro , 1970

Eu sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Mas não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta.

Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro bem com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prazenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de supetão
Pra passar o capitão.

Só não abro pra essa gente
Que diz (a mim bem me importa…)
Que se uma pessoa é burra
É burra como uma porta.

Eu sou muito inteligente!

Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Fecho tudo nesse mundo
Só vivo aberta no céu!

Balada do cavalão – Vinicius de Moraes

BALADA DO CAVALÃO

Rio de Janeiro , 1946

A tarde morre bem tarde
No morro do Cavalão…
Tem um poder de sossego.
Dentro do meu coração
Quanto sangue derramado!

Balança, rede, balança…

Susana deixou minha alma
Numa grande confusão
Seu berço ficou vazio
No morro do Cavalão:
Pequena estrela da tarde.

Ah, gosto da minha vida
Sangue da minha paixão!

Levou o anjo o outro anjo
Da saudade de seu pai
Susana foi de avião
Com quinze dias de idade
Batendo todos os recordes!

Que tarde que a tarde cai!

Poeta, diz teu anseio
Que o santo te satisfaz:
Queria fazer mais um filho
Queria tanto ser pai!

Voam cardumes de aves
No cristal rosa do ar.
Vontade de ser levado
Pelas correntes do mar
Para um grande mar de sangue!

E a vida passa depressa
No morro do Cavalão
Entre tantas flores, tantas
Flores tontas, parasitas
Parasitas da nação.

Quanta garrafa vazia
Quanto limão pelo chão!

Menina, me diz um verso
Bem cheio de ingratidão?
– Era uma vez um poeta
No morro do Cavalão
Tantas fez que a dor-de-corno
Bateu com ele no chão
Arrastou ele nas pedras
Espremeu seu coração
Que pensa usted que saiu?
Saiu cachaça e limão.

Susana nasceu morena
E é Mello Moraes também:
É minha filha pequena
Tão boa de querer bem!

Oh, Saco de São Francisco
Que eu avisto a cavaleiro
Do morro do Cavalão!
(O Saco de São Francisco
Xavier não chama não
Há de ser sempre de Assis:
São Francisco Xavier
É nome de uma estação)
Onde está minha alegria
Meus amores onde estão?

A casa das mil janelas
É a casa do meu irmão
Lá dentro me esperam elas
Que dormem cedo com medo
Da trinca do Cavalão.

Balança, rede, balança…

Amiga minha, hoje no céu a lua – Vinicius de Moraes

AMIGA MINHA, HOJE NO CÉU A LUA…

Rio de Janeiro , 2004

Amiga minha, hoje no céu a Lua
Tem uma face que me lembra a tua
A Lua é sempre assim, ou é teu rosto
Que dorme no céu posto, amiga minha?

Ah, desce do teu nicho, rosto puro
E vem iluminar meu leito escuro.

Astro solitário, ó Sol
Ilumina meu poema da tua claridade matinal
Transfunde-lhe nas veias o éter com o azul
E torna-o simples.

Algumas vezes tem acontecido que estando a amiga – Vinicius de Moraes

ALGUMAS VEZES TEM ACONTECIDO QUE ESTANDO A AMIGA…

Rio de Janeiro , 2004

De repente calma, e eu em sua companhia
Por causa de um céu azul, ou de um azul de nostalgia
Ela me prende e me beija e me acarinha, e eu perdido por aquela
Suavidade, sinto-me criança e peço-lhe para assistir ao banho dela.

E algumas vezes tem acontecido que ela acede, a face quieta
De se sentir amada além da poesia pelo poeta
E me leva pela mão vagamente emocionada, me leva
Lá onde eu sou, vagamente emocionado, e a vejo se despir na treva.

Desde então tudo passa a ser submersão
E risos breves, borbulhos tépidos da água que a enxágua.

Amanheceu na rodoviária – Jose Arthuso

Um homem escutando

o resultado dos jogos

no radinho de pilha

a mocinha logista

comendo coxinha

e matando uma mosca

com um sorriso,

policiais chutando mendigos

com seus coturnos clérigos,

um casal de hippies

vendendo filtros de sonhos

na realidade de um pesadelo urbano,

passos emergindo

do ponteiro de um relógio

em direção ao embarque

de um suicídio cotidiano

corre, corre

para onde?

por todos os lados.

apitos de ordens

abre o jornal

recebe mensagem,

uma selfie?

paga a passagem,

para onde?

quem sabe?

um cenário de metal

pousa no meu ombro,

eu vislumbro

um oceano.

Canções – Vinicius de Moraes

CANÇÕES

Rio de Janeiro , 1946

Soneto de fidelidade
Vinicius de Moraes , Capiba “De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento”

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa lhe dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure

Balanço do filho morto – Vinicius de Moraes

BALANÇO DO FILHO MORTO

2013

Homem sentado na cadeira de balanço
Sentado na cadeira de balanço
Na cadeira de balanço
De balanço
Balanço do filho morto.

Homem sentado na cadeira de balanço
Todo o teu corpo diz que sim
Teu corpo diz que sim
Diz que sim
Que sim, teu filho está morto.

Homem sentado na cadeira de balanço
Como um pêndulo, para lá e para cá
O pescoço fraco, a perna triste
Os olhos cheios de areia
Areia do filho morto.

Nada restituirá teu filho à vida
Homem sentado na cadeira de balanço
Tua meia caída, tua gravata
Sem nó, tua barba grande
São a morte
são a morte
A morte do filho morto.

Silêncio de uma sala: e flores murchas.
Além um pranto frágil de mulher
Um pranto… o olhar aberto sobre o vácuo
E no silêncio a sensação exata
Da voz, do riso, do reclamo débil.
Da órbita cega os olhos dolorosos
Fogem, moles, se arrastam como lesmas
Empós a doce, inexistente marca
Do vômito, da queda, da mijada.

Do braço foge a tresloucada mão
Para afagar a imponderável luz
De um cabelo sem som e sem perfume.
Fogem da boca lábios pressurosos
Para o beijo incolor na pele ausente.
Nascem ondas de amor que se desfazem
De encontro à mesa, à estante, à pedra mármore.
Outra coisa não há senão o silêncio
Onde com pés de gelo uma criança
Brinca, perfeitamente transparente
Sua carne de leite, rosa e talco.
Pobre pai, pobre, pobre, pobre, pobre
Sem memória, sem músculo, sem nada
Além de uma cadeira de balanço
No infinito vazio… o sofrimento
Amordaçou-te a boca de amargura
E esbofeteou-te palidez na cara.
Ergues nos braços uma imagem pura
E não teu filho; jogas para cima
Um bocado de espaço e não teu filho
Não são cachos que sopras, porém cinzas
A asfixiar o ar onde respiras.
Teu filho é morto; talvez fosse um dia
A pomba predileta, a glória, a messe
O teu porvir de pai; mas novo e tenro
Anjo, levou-o a morte com cuidado
De vê-lo tão pequeno e já exausto
De penar — e eis que agora tudo é morte
Em ti, não tens mais lágrimas, e amargo
É o cuspo do cigarro em tua boca.
Mas deixa que eu te diga, homem temente
Sentado na cadeira de balanço
Eu que moro no abismo, eu que conheço
O interior da entranha das mulheres
Eu que me deito à noite com os cadáveres
E liberto as auroras do meu peito:
Teu filho não morreu! a fé te salva
Para a contemplação da sua face
Hoje tornada a pequenina estrela
Da tarde, a jovem árvore que cresce
Em tua mão: teu filho não morreu!
Uma eterna criança está nascendo
Da esperança de um mundo em liberdade.
Serão teus filhos, todos, homem justo
Iguais ao filho teu; tira a gravata
Limpa a unha suja, ergue-te, faz a barba
Vai consolar tua mulher que chora…
E que a cadeira de balanço fique
Na sala, agora viva, balançando
O balanço final do filho morto.

Balada das arquivistas – Vinicius de Moraes

BALADA DAS ARQUIVISTAS

rio de Janeiro , 1954

Oh jovens anjos cativos
Que as asas vos machucais
Nos armários dos arquivos!
Delicadas funcionárias
Designadas por padrões
Prisioneiras honorárias
Da mais fria das prisões
É triste ver-vos, suaves
Entre monstros impassíveis
Trancadas a sete chaves:
Oh, puras e imarcescíveis!
Dizer que vós, bem-amadas
Conservai-vos impolutas
Mesmo fazendo a juntada
De processos e minutas!
Não se amargam vossas bocas
De índices e prefixos
Nem lembram os olhos das loucas
Vossos doces olhos fixos.
Curvai-vos para colossos
Hollerith, de aço hostil
Como se fora ante moços
Numa pavana gentil.
Antes não classificásseis
Os maços pelos assuntos
Criando a luta de classes
Num mundo de anseios juntos!
Enfermeiras de ambições
Conheceis, mudas, a nu
O lixo das promoções
E das exonerações
A bem do serviço público.
Ó Florences Nightingale
De arquivos horizontais:
Com que zelo alimentais
Esses eunucos letais
Que se abrem com chave yale!
Vossa linda juventude
Clama de vós, bem-amadas!
No entanto, viveis cercadas
De coisas padronizadas
Sem sexo e sem saúde…
Ah, ver-nos em primavera
Sobre papéis de ocasião
Na melancólica espera
De uma eterna certidão!
Ah, saber que em vós existe
O amor, a ternura, a prece
E saber que isso fenece
Num arquivo feio e triste!
Deixai-me carpir, crianças
A vossa imensa desdita
Prendestes as esperanças
Numa gaiola maldita.
Do fundo do meu silêncio
Eu vos incito a lutardes
Contra o Prefixo que vence
Os anjos acorrentados
E ir passear pelas tardes
De braço com os namorados.
Clube do Gueto