Soneto de Agosto – Vinicius de Moraes

SONETO DE AGOSTO

Oxford , 1938

Tu me levaste, eu fui… Na treva, ousados
Amamos, vagamente surpreendidos
Pelo ardor com que estávamos unidos
Nós que andávamos sempre separados.

Espantei-me, confesso-te, dos brados
Com que enchi teus patéticos ouvidos
E achei rude o calor dos teus gemidos
Eu que sempre os julgara desolados.

Só assim arrancara a linha inútil
Da tua eterna túnica inconsútil…
E para a glória do teu ser mais franco

Quisera que te vissem como eu via
Depois, à luz da lâmpada macia
O púbis negro sobre o corpo branco.

Oxford, 1938

Soneto a Pablo Neruda – Vinicius de Moraes

SONETO A PABLO NERUDA

Rio de Janeiro , 1957

Quantos caminhos não fizemos juntos
Neruda, meu irmão, meu companheiro…
Mas este encontro súbito, entre muitos
Não foi ele o mais belo e verdadeiro?

Canto maior, canto menor — dois cantos
Fazem-se agora ouvir sob o Cruzeiro
E em seu recesso as cóleras e os prantos
Do homem chileno e do homem brasileiro

E o seu amor — o amor que hoje encontramos…
Por isso, ao se tocarem nossos ramos
Celebro-te ainda além, Cantor Geral

Porque como eu, bicho pesado, voas
Mas mais alto e melhor do céu entoas
Teu furioso canto material!

Atlântico Sul, a caminho do Rio, 1960

Rancho das flores – Vinicius de Moraes

RANCHO DAS FLORES

Rio de Janeiro , 2004

Entre as prendas com que a natureza
Alegrou este mundo onde há tanta tristeza
A beleza das flores realça em primeiro lugar
É um milagre
De aroma florido
Mais lindo que toda as graças do céu
E até mesmo do mar

Olhem bem para a rosa
Não há mais formosa
É a flor dos amantes
É a rosa-mulher
Que em perfume e nobreza
Vem antes do cravo
E do lírio e da hortênsia
E da dália e do bom crisântemo
E até mesmo do puro e gentil malmequer

E reparem no cravo
O escravo da rosa
Que flor mais cheirosa
De enfeite sutil
E no lírio que causa o delírio da rosa
O martírio da alma da rosa
Que é a flor mais vaidosa e mais prosa
Entre as flores do nosso Brasil

Abram alas pra dália garbosa
Da cor mais vistosa
Do grande jardim da existência das flores
Tão cheio de cores gentis
E também para a hortênsia inocente
A flor mais contente
No azul do seu corpo macio e feliz

Satisfeita da vida
Vem a margarida
Dos que têm paixão
E agora é a vez
Da papoula vermelha
A que dá tanto mel pras abelhas
E alegra este mundo tão triste
Com a cor que é a do meu coração

E agora aqui temos o bom crisântemo
Seu nome cantemos em verso e em prosa
Porém que não tem a beleza da rosa

Que uma rosa não é só uma flor
Uma rosa é uma rosa é uma rosa
É a mulher rescendendo de amor

Quietação – Vinicius de Moraes

QUIETAÇÃO

Rio de Janeiro , 1933

No espaço claro e longo
O silêncio é como uma penetração de olhares calmos…
Eu sinto tudo pousado dentro da noite
E chega até mim um lamento contínuo de árvores curvas.
Como desesperados de melancolia
Uivam na estrada cães cheios de lua.
O silêncio pesado que desce
Curva todas as coisas religiosamente
E o murmúrio que sobe é como uma oração da noite…

Eu penso em ti.
Minha boca cicia longamente o teu nome
E eu busco sentir no ar o aroma morno da tua carne.
Vejo-te ainda na visão que te precisou no espaço
Ouvindo de olhos dolentes as palavras de amor que eu te dizia
Fora do tempo, fora da vida, na cessação suprema do instante
Ouvindo, junto de mim, a angústia apaixonada da minha voz
Num desfalecimento.

Pelo espaço claro e longo
Vibra a luz branca das estrelas.
Nem uma aragem, tudo parado, tudo silêncio
Tudo imensamente repousado.
E eu cheio de tristeza, sozinho, parado
Pensando em ti.

Rosário – Vinicius de Moraes

ROSÁRIO

Rio de Janeiro , 1946

E eu que era um menino puro
Não fui perder minha infância
No mangue daquela carne!
Dizia que era morena
Sabendo que era mulata
Dizia que era donzela
Nem isso não era ela
Era uma moça que dava.
Deixava… mesmo no mar
Onde se fazia em água
Onde de um peixe que era
Em mil se multiplicava
Onde suas mãos de alga
Sobre meu corpo boiavam
Trazendo à tona águas-vivas
Onde antes não tinha nada.
Quanto meus olhos não viram
No céu da areia da praia
Duas estrelas escuras
Brilhando entre aquelas duas
Nebulosas desmanchadas
E não beberam meus beijos
Aqueles olhos noturnos
Luzindo de luz parada
Na imensa noite da ilha!
Era minha namorada
Primeiro nome de amada
Primeiro chamar de filha…
Grande filha de uma vaca!
Como não me seduzia
Como não me alucinava
Como deixava, fingindo
Fingindo que não deixava!
Aquela noite entre todas
Que cica os cajus! travavam!
Como era quieto o sossego
Cheirando a jasmim-do-cabo!
Lembro que nem se mexia
O luar esverdeado
Lembro que longe, nos Ionges
Um gramofone tocava
Lembro dos seus anos vinte
Junto aos meus quinze deitados
Sob a luz verde da lua.
Ergueu a saia de um gesto
Por sobre a perna dobrada
Mordendo a carne da mão
Me olhando sem dizer nada
Enquanto jazente eu via
Como uma anêmona na água
A coisa que se movia
Ao vento que a farfalhava.
Toquei-lhe a dura pevide
Entre o pêlo que a guardava
Beijando-lhe a coxa fria
Com gosto de cana brava.
Senti à pressão do dedo
Desfazer-se desmanchada
Como um dedal de segredo
A pequenina castanha
Gulosa de ser tocada.
Era uma dança morena
Era uma dança mulata
Era o cheiro de amarugem
Era a lua cor de prata
Mas foi só naquela noite!
Passava dando risada
Carregando os peitos loucos
Quem sabe para quem, quem sabe?
Mas como me seduzia
A negra visão escrava
Daquele feixe de águas
Que sabia ela guardava
No fundo das coxas frias!
Mas como me desbragava
Na areia mole e macia!
A areia me recebia
E eu baixinho me entregava
Com medo que Deus ouvisse
Os gemidos que não dava!
Os gemidos que não dava…
Por amor do que ela dava
Aos outros de mais idade
Que a carregaram da ilha
Para as ruas da cidade
Meu grande sonho da infância
Angústia da mocidade.

Revolta – Vinicius de Moraes

REVOLTA

Rio de Janeiro , 1933

Alma que sofres pavorosamente
A dor de seres privilegiada
Abandona o teu pranto, sê contente
Antes que o horror da solidão te invada.

Deixa que a vida te possua ardente
Ó alma supremamente desgraçada.
Abandona, águia, a inóspita morada
Vem rastejar no chão como a serpente.

De que te vale o espaço se te cansa?
Quanto mais sobes mais o espaço avança…
Desce ao chão, águia audaz, que a noite é fria.

Volta, ó alma, ao lugar de onde partiste
O mundo é bom, o espaço é muito triste…
Talvez tu possas ser feliz um dia.

Receita de mulher – Vinicius de Moraes

RECEITA DE MULHER

Rio de Janeiro , 1959

As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como o âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteia em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebal
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37º centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se se fechar os olhos
Ao abri-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

Pátria Minha – Vinicius de Moraes

PÁTRIA MINHA

Barcelona , 1949

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu…

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda…
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha… A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
“Liberta que serás também”
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão…
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
“Pátria minha, saudades de quem te ama…
Vinicius de Moraes.”

P(B)A(O)I – Vinicius de Moraes

P(B)A(O)I

Rio de Janeiro , 2004

Rio de Janeiro
A Carlos Drummond de Andrade,
que com seu só título Boitempo
me deu a chave deste poema

Pai
Modorrando de tarde na cadeira
De balanço, a cabeça cai-não-cai.
Pai
Espantando o moscardo
Feito o boi faz com o rabo
Zum! iridesceu, se foi, múu.
Pai. Ah, como dói
Lembrar-te assim, pai pé-de-boi
Sentado à mesa mastigando sonhos
Boipai, entre as samambaias e avencas
Do pequeno jardim, utilinútil, ai…
Paiboi, paiboiota, boipapai
Babando amor no curral das acácias
Quebrando ferrolhos com a força
Dos cascos fendidos para não entrar mais boi
No chão de dentro, igual a mim…
Ah, como dói lembrar-te, boi
Triste, boiassim, a córnea branca
No olho trágico, ruminando o medo
Pelo novilho tresmalhado.
Pai. Boi.
Olhando do portão o chão de fora
Na noite escura, múu, à espera. Onde estou eu
Teu vitelão insone, onde?
Nas tetas de que rês? Em que pasto?
Que não o teu, e da boieira
Que também já se foi? Boipai
Paiboi.
Muge-me, boi-espaço
Da tua eternidade as cantigas
Mais lindas que soavas com teus dedos
Ungulados nas cordas da viola
Hoje partida. Geme
Boi-da-guia, tua nunca boesia
Dá-me, boi-de-corte
Um quilo de tua alcatra decomposta
Tua língua comida
Um carrinho de mão de tua bosta
Com que fertilizar minha poesia
Neste instante transposta.
Para plantar meu novo verso
Menos eu, mais canção, menos enxerto
Não posso prescindir da tua morte
Teus ossos, teu estrume
Tu bom pai, tu boipai, tu boiconsorte
Eu boiciúme.

O poeta em trânsito ou o filho pródigo – Vinicius de Moraes

O POETA EM TRÂNSITO OU O FILHO PRÓDIGO

Rio de Janeiro , 2004

Acordarei as aves que, noturnas
Por medo à treva calam-se nos galhos
E aguardam insones o romper da aurora.
Despertarei os bêbados nos pórticos
Os cães sonâmbulos e os gerais mistérios
Que envolvem a noite. Pedirei gritando
Ao mar que mate e ao vento que violente
As jovens praias de pudor tão branco.
Quebrarei com ressacas e risadas
O silêncio habitual de Deus na noite
A intimidar os homens. Que a cidade
Ponha o xale da lua sobre a fronte
E saia a receber o seu poeta
Com ramos de jasmim e outras saudades.
A hora é de beleza. Em cada pedra
Em cada casa, em cada rua, em cada
Árvore, vive ainda uma carícia
Feita por mim, por mim que fui amante
Urbano, e mais que urbano, sobre-humano
Na noturna cidade desvairada.
Provavelmente não virei montado
Em cavalo nenhum, como soía
Nem de armadura, que essa, a poesia
Mais que nenhuma me defenderia
Numa cota de malhas de silêncio.
É bem possível até que chegue bêbado
E se em janeiro, de camisa esporte.
O importante é chegar, ser a unidade
Entre a cidade e eu, eu e a cidade
Ouvir de novo o mar se estilhaçando
Nas rochas, ou bramindo no oceano
Sozinho como um deus……………………………
……………………………………………………………..
………………………………………Ó bem-amada
Rio! como mulher petrificada
Em nádegas e seios e joelhos
De rocha milenar, e verdejante
Púbis e axilas e os cabelos soltos
De clorofila fresca e perfumada!
Eu te amo, mulher adormecida
Junto ao mar! eu te amo em tua absoluta
Nudez ao sol e placidez ao luar.
Junto de ti me sinto, tua luz
Não fere o meu silêncio. O meu silêncio
Te pertence. Eu sei que resguardada
Dos seres que se movem entre teus braços
Teus olhos têm visões de outros espaços
Passados e futuros…
Como às vezes
Sobre a lunar estrada Niemeyer
Entre o clamor das ondas fustigadas
Meditam as montanhas. Que silêncio
Se escuta ali pousar, que gravidade
Da natureza! Eu sei, é bem verdade
Que sob o sol o Rio é muito claro
Muito claro demais, e sem mistério.
Eu sei que ao revérbero de janeiro
Morrem segredos como morrem as aves
Contentes de morrer. Eu sei tudo isso.
Já vi com esses meus olhos incansáveis
Idéias explodirem como flores
Entre réstias de sol já vi castelos
Matemáticos ruírem como cartas
Sistemas filosóficos perderem
A lógica do dia para a noite
Obras de arte nascentes desviarem-se
Do rumo da criação ante uma axila
Suada, e muitos santos se danarem
Sob a ação salutar do ultravioleta.
Mas pra quem tem o hábito da noite
Quem vive em intimidade com o silêncio
Quem sabe ouvir a música da treva
Quando na treva reproduz-se a vida
Para esse, a cidade se oferece
Num clima universal de eternidade
No contraponto do mover do mar
E no mutismo milenar da pedra
Em sua infinidade de infinitos
Para esse os Dois Irmãos contam uma história
Fantástica, de forças irrompendo
Da terra e se dispondo em formas súbitas
Viúva! Pão de Açúcar! Corcovado!
E mais ao sul, sarcófago do sol
A mesa imensa onde esse pode ver
Se acaso souber ver, no fim do dia
A silhueta do homem primitivo
(A mesma que ainda hoje, transformada
Passa sobre o mosaico da Avenida)
E até quem sabe, natural torcida
Assistindo de sua arquibancada
As serpentes do mar em luta ignara
Movendo maremotos, à porfia
No estádio natural da Guanabara.

Provavelmente não virei montado… – Vinicius de Moraes

PROVAVELMENTE NÃO VIREI MONTADO…

Rio de Janeiro , 2004

Provavelmente não virei montado
Em cavalo nenhum, como soía
Nem de armadura, que essa, trago vestida
Feita do aço da vida
Sobre a cota de malha do silêncio.
É possível até que chegue bêbado
E se em janeiro, de camisa esporte.
O importante é chegar, ser a unidade
Ser a cidade e eu, eu e a cidade
Ouvir de novo o mar se estilhaçando
Nas rochas ou bramindo no oceano
Sozinho como um Deus. Ou no verão
No verão, quando o sol, embora oculto
Queima a cera da Lua
Ver – ó visão! Vênus morrer nas ondas
A pura, a louca, a grande suicida
Cuja morte restitui os homens à vida
Na ilusão do tempo. Oh bem-amada
Cidade! como mulher petrificada
Em nádegas e seios e joelhos
De rocha milenar, e verdejante
Púbis e doces axilas e cabeleira
Vegetal
Mulher adormecida junto ao mar
Eu te amo em teu sol e teu luar
Junto de ti me sinto, tua luz
Não fere o meu silêncio. O meu silêncio
Te pertence. Eu sei que, resguardada
De seres que se movem entre teus braços
Teus olhos têm visões de outros espaços
Passados e futuros.

*

Esta é a cidade em que te vi passando
Esta é a cidade que me viu sofrendo
Esta é a cidade que trilhei fugindo
Metrópole fatal, hosana! hosana!
Esta é Copacabana, ampla laguna
Curva e horizonte, arco de amor vibrando
Suas setas de luz contra o infinito.
Aqui meus olhos desnudaram estrelas
Aqui meus braços discursaram à Lua
Desabrochavam tigres dos meus passos
E as sereias por mim se consumiam.
Copacabana! praia de memórias
Quantos êxtases, quantas madrugadas
Em teu colo marítimo! esta é a areia
Que tanto enlamacei com minhas lágrimas
Aquele é o bar que freqüentei. Vês tu
Aquele escuro ali? É um monumento
Cone de sombra erguido pela noite
Para marcar por toda a eternidade
O local onde, um dia, fui perjuro
Ao teu amor. Ali beijei-te ansiado
Como se a vida fosse terminar
Naquele louco embate. Ali cantei
Ali menti, ali me silenciei
Para gozo da aurora pervertida.
Sobre o banco de pedra que ali está
Nasceu uma poesia. Ali jurei
Um dia me matar. Ali fui mártir
Fui covarde, fui bárbaro, fui santo.

Clube do Gueto