Fernando Pessoa

“Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu ?”
Deus sabe, porque o escreveu.”

Sacrifício da Aurora – Vinicius de Moraes

SACRIFÍCIO DA AURORA

rio de Janeiro , 1954

Um dia a aurora chegou-se
Ao meu quarto de marfim
E com seu riso mais doce
Deitou-se junto de mim
Beijei-lhe a boca orvalhada
E a carne tímida e exangue
A carne não tinha sangue
A boca sabia a nada.

Apaixonei-me da Aurora
No meu quarto de marfim
Todo o dia à mesma hora
Amava-a só para mim
Palavras que me dizia
Transfiguravam-se em neve
Era-lhe o peso tão leve
Era-lhe a mão tão macia.

Às vezes me adormecia
No meu quarto de marfim
Para acordar, outro dia
Com a Aurora longe de mim
Meu desespero covarde
Levava-me dia afora
Andando em busca da Aurora
Sem ver Manhã, sem ver Tarde.

Hoje, ai de mim, de cansado
Há dias que até da vida
Durmo com a Noite, ausentado
Da minha Aurora esquecida…
É que apesar de sombria
Prefiro essa grande louca
À Aurora, que além de pouca
É fria, meu Deus, é fria!

Rua da Amargura – Vinicius de Moraes

RUA DA AMARGURA

Rio de Janeiro , 1933

A minha rua é longa e silenciosa como um caminho que foge
E tem casas baixas que ficam me espiando de noite
Quando a minha angústia passa olhando o alto.
A minha rua tem avenidas escuras e feias
De onde saem papéis velhos correndo com medo do vento
E gemidos de pessoas que estão eternamente à morte.
A minha rua tem gatos que não fogem e cães que não ladram
Tem árvores grandes que tremem na noite silente
Fugindo as grandes sombras dos pés aterrados.
A minha rua é soturna…
Na capela da igreja há sempre uma voz que murmura louvemos
Sozinha e prostrada diante da imagem
Sem medo das costas que a vaga penumbra apunhala.

A minha rua tem um lampião apagado
Na frente da casa onde a filha matou o pai
Porque não queria ser dele.
No escuro da casa só brilha uma chapa gritando quarenta.

A minha rua é a expiação de grandes pecados
De homens ferozes perdendo meninas pequenas
De meninas pequenas levando ventres inchados
De ventres inchados que vão perder meninas pequenas.
É a rua da gata louca que mia buscando os filhinhos nas portas das casas.

É a impossibilidade de fuga diante da vida
É o pecado e a desolação do pecado
É a aceitação da tragédia e a indiferença ao degredo
Como negação do aniquilamento.

É uma rua como tantas outras
Com o mesmo ar feliz de dia e o mesmo desencontro de noite.
É a rua por onde eu passo a minha angústia
Ouvindo os ruídos subterrâneos como ecos de prazeres inacabados.
É a longa rua que me leva ao horror do meu quarto
Pelo desejo de fugir à sua murmuração tenebrosa
Que me leva à solidão gelada do meu quarto…

Rua da amargura…

Romanza – Vinicius de Moraes

ROMANZA

Rio de Janeiro , 1933

Branca mulher de olhos claros
De olhar branco e luminoso
Que tinhas luz nas pupilas
E luz nos cabelos louros
Onde levou-te o destino
Que te afastou para longe
Da minha vista sem vida
Da minha vida sem vista?

Andavas sempre sozinha
Sem cão, sem homem, sem Deus
Eu te seguia sozinho
Sem cão, sem mulher, sem Deus
Eras a imagem de um sonho
A imagem de um sonho eu era
Ambos levando a tristeza
Dos que andam em busca do sonho.

Ias sempre, sempre andando
E eu ia sempre seguindo
Pisando na tua sombra
Vendo-a às vezes se afastar
Nem sabias quem eu era
Não te assustavam meus passos
Tu sempre andando na frente
Eu sempre atrás caminhando.

Toda a noite em minha casa
Passavas na caminhada
Eu te esperava e seguia
Na proteção do meu passo
E após o curto caminho
Da praia de ponta a ponta
Entravas na tua casa
E eu ia, na caminhada.

Eu te amei, mulher serena
Amei teu vulto distante
Amei teu passo elegante
E a tua beleza clara
Na noite que sempre vinha
Mas sempre custava tanto
Eu via a hora suprema
Das horas da minha vida.

Eu te seguia e sonhava
Sonhava que te seguia
Esperava ansioso o instante
De defender-te de alguém
E então meu passo mais forte
Dizia: quero falar-te
E o teu, mais brando, dizia:
Se queres destruir… vem.

Eu ficava. E te seguia
Pelo deserto da praia
Até avistar a casa
Pequena e branca da esquina.
Entravas. Por um momento
Esperavas que eu passasse
Para o olhar de boa-noite
E o olhar de até-amanhã.

Quase um ano o nosso idílio.
Uma noite… não passaste.
Esperei-te ansioso, inquieto
Mas não vieste. Por quê?
Foste embora? Procuraste
O amor de algum outro passo
Que em vez de seguir-te sempre
Andasse sempre ao teu lado?

Eu ando agora sozinho
Na praia longa e deserta
Eu ando agora sozinho
Por que fugiste? Por quê?
Ao meu passo solitário
Triste e incerto como nunca
Só responde a voz das ondas
Que se esfacelam na areia.

Branca mulher de olhos claros
Minha alma ainda te deseja
Traze ao meu passo cansado
A alegria do teu passo
Onde levou-te o destino
Que te afastou para longe
Da minha vista sem vida
Da minha vida sem vista?

Uma música que seja – Vinicius de Moraes

UMA MÚSICA QUE SEJA

Rio de Janeiro , 1962

… como os mais belos harmônicos da natureza. Uma música que seja como o som do vento na cordoalha dos navios, aumentando gradativamente de tom até atingir aquele em que se cria uma reta ascendente para o infinito. Uma música que comece sem começo e termine sem fim. Uma música que seja como o som do vento numa enorme harpa plantada no deserto. Uma música que seja como a nota lancinante deixada no ar por um pássaro que morre. Uma música que seja como o som dos altos ramos das grandes árvores vergastadas pelos temporais. Uma música que seja como o ponto de reunião de muitas vozes em busca de uma harmonia nova. Uma música que seja como o vôo de uma gaivota numa aurora de novos sons…

Todas as namoradas que eu já tive – Vinicius de Moraes

TODAS AS NAMORADAS QUE EU JÁ TIVE…

Rio de Janeiro , 2004

Todas as namoradas que eu já tive
Estão noivas
Uma só dentre todas não está noiva
Casou-se.
Nenhuma se lembra mais de mim
As que tiveram meus beijos evitam meus olhos
As que tiveram minha afeição riem mal de mim
E beijam furtivamente os noivos nos cinemas e nas praias
Todas têm meus sonetos de amor
Com promessas ardentes de constância e fidelidade
Todas têm meu retrato
O retrato do menino risonho que eu já fui
Com todas eu gastei algumas horas do dia
E algumas horas da noite
Todas estão noivíssimas
E são apenas meninas sem juízo fazendo o que querem
Dando aos namorados anteriores a satisfação social do noivado
E exibindo o noivo bonito aos olhos das moças sem namorado.

Algumas eu estimei sinceramente
Sem grandes palavras mas com olhares francos
Olhares que eu estudava nos bondes com outras
Para fazê-los ainda mais verdadeiros
Com outras me diverti
Passeando horas e horas braço com braço
Com palavras grandes e pequenos olhares
A todas eu feri inconscientemente
As que eu beijei e as que eu não beijei
As que eu beijei porque um dia não quis beijar
As que eu não beijei porque um dia quis beijar.

Vi-as fugirem todas de mim
E me vi fugindo de todas elas
Vejo-as agora aqui e ali ontem e hoje
A casada, com um filho
As noivas, com brilhos maternais nos olhos
Futuros infelizes para o mundo
Vejo-me por momentos pai de família comprando brinquedos
E a satisfação de estar só é tão grande
Que no fundo eu estimo sinceramente todas essas meninas
Que estão noivas e serão muito felizes
E a que está casada e não é feliz mas faz que é

E me estimo mais, ainda, a mim próprio
Que estou só, feliz e só, com os meus amigos e com a minha boemia discreta.

Solilóquio – Vinicius de Moraes

SOLILÓQUIO

Rio de Janeiro , 1938

Talvez os imensos limites da pátria me lembrem os puros
E amargue em meu coração a descrença.
Sinto-me tão cansado de sofrer, tão cansado! — algum dia, em alguma parte
Hei de lançar também as âncoras ardentes das promessas
Mas no meu coração intranquilo não há senão fome e sede
De lembranças inexistentes.

O que resta da grande paisagem de pensamentos vividos
Dize, minha alma, senão o vazio?
São verdades as lágrimas, os estremecimentos, os tédios longos
As caminhadas infinitas no oco da eterna voz que te obriga?
E no entanto o que crê em ti não tem o teu amor aprisionado
Escravo de fruições efêmeras…

Ah, será para sempre assim… o beijo pouco do tempo
Na face presa da eternidade
E em todos os momentos a sensação pobre de estar vivendo
E ter em si somente o que não pode ser vivido
E em todos os momentos a beleza, e apenas
Num só momento a prece…

Nunca me sorrirão vozes infantis no corpo, e quem sabe por tê-las
Muito ardentemente desejado…
Talvez os limites da pátria me lembrem os puros e enlouqueça
Em mim o que não foi da carne conquistado.
Muitas vezes hei de me dizer que não sou senão juventude
No seio do pântano triste.

Quero-te, porém, vida, súplica! o medo de mim mesmo
Não há na minha saudade.
É que dói não viver em amor e em renúncia
Quando o amor e a renúncia são terras dentro de mim
E uma vez mais me deitarei no frio, guia de luz perdido
Sem mistérios e sem sombra.

Bem viram os que temeram a minha angústia e as que se disseram:
— Ele perdeu-se no mar!
No mar estou perdido, sem céu e sem terra e sem sede de água
E nada senão minha carne resiste aos apelos do ermo…
O que restará de ti, homem triste, que não seja a tua tristeza
Fruto sobre a terra morta…

Não pensar, talvez… Caminhar ciliciando a carne
Sobre o corpo macerado da vida
Ser um milhão na mesma cidade desabitada
E sendo apenas um, ir acordando o amor e a angústia
E da inquietação vinda e multiplicada, arrancar um riso sem força
Sobre as paisagens inúteis.

Mas, oh, saber… — saber até o fundo do conhecimento
Sobre as aves e os lírios!
Saber a pureza bailando no pensamento como um gênio perfeito
E na alma os cantos límpidos e os voos de uma poesia!
E nada poder, nada, senão ir e vir como a sombra do condenado
Pelo silêncio em escuta…

E não sou um covarde… — sofro pelas manhãs e pelas tardes
E pelas noites desvaneço…
No entanto, é covarde que me sinto no olhar dos que me amam
E no prazer que arranco cem vezes da carne ou do espírito que quero
Ai de mim, tão grande, tão pequeno… — e quando o digo intimamente!
E em ambos, sem pânico…

E me pergunto: Serei vazio de amor como os ciprestes
No seio da ventania?
Serei vazio de serenidade como as águas no seio do abismo
Ou como as parasitas no seio da mata serei vazio de humildade?
Ou serei o amor eu mesmo e a calma e a humildade eu mesmo
No seio do infinito vazio?

E me pergunto: O que é o perigo, onde a sua fascinação profunda
E o gosto ardente de morrer?
Não é a morte o meu voto murmurante
Que caminha comigo pelas estradas e adormece no meu leito?
O que é morrer senão viver placidamente
Na imutável espera?

Nada respondo — nada responde o desespero
Solidão sem desvario.
Mas resta, resta a ânsia das palavras murmuradas ao vento
E a emoção das visões vividas no seu melhor momento
Resta a posse longínqua e em eterna lembrança
Da imagem única.

Resta?… Já me disse blasfêmias no âmago do prazer sentido
Sobre o corpo nu da mulher
Já arranquei de mim mesmo o sumo da sabedoria
Para fazê-lo vibrar dolorosamente à minha vontade
E no entanto… posso me glorificar de ter sido forte
Contra o que sempre foi?

Hão de ir todos, todos, para as celebrações e para os ritos
Ficarei em casa, sem lar
Hei de ouvir as vozes dos amantes que não se entediam
E dos amigos que não se amam e não lutam
As portas abertas, à espera dos passos do retardatário
Não receberei ninguém.

Talvez nos imensos limites da pátria estejam os puros
E apenas em mim o ilimitado…
Mas oh, cerrar os olhos, dormir, dormir longe de tudo
Longe mesmo do amor longe de mim!
E enquanto se vão todos, heróicos, santos, sem mentira ou sem verdade
Ficar, sem perseverança…

Pressentimento – Vinicius de Moraes

PRESSENTIMENTO

Rio de Janeiro , 2004

Deixa dormir na tua porta o sono, poeta apascentado pela Lua
Seus seios bebem teu sangue para alimentar os anjos
Ouve as flores, sente como as suas minúsculas tetas de perfume
Palpitam cheias de vinho para as pequeninas ovelhas do céu
Fica em calma, enche teus olhos do verde negror da noite
E quando muito recita um pouco de poesia à toa para as estrelas
Porque nada tens a fazer, nada! e os passarinhos continuam soltos por aí…
Clube do Gueto