O corta-jaca – Vinicius de Moraes

O CORTA-JACA

Rio de Janeiro , 2004

Rattus rattus rattus
(Pelas sarjetas de Ipanema e do Leblon)
Rattus rattus rattus
(Estupefatos gatos fogem de pavor)
Rattus rattus rattus
A tua louca simetria
Rói a raiz dos próprios fatos
Rattus rattus
E acaba roendo a poesia.

Rattus rattus rattus
(Foi o mesmo Deus que fez o lírio quem te fez?)
Rattus rattus rattus
(Tu multiplicas dois por quatro igual a dez)
Rattus rattus rattus
Impessoal procriador
Não chegues junto aos meus sapatos
Rattus rattus
Porque eu te mato, ó roedor.

É o rato é o rato
É o rato criança
Cujo artesanato
Lhe vem da lembrança
Do rato rapaz
Que guarda o retrato
Risonho e roaz
Do rato do rato
Do rato já velho
Que fuma charuto
Se olhando no espelho
E de quem os atos
Que a cifra amplifica
Um bando de ratos
Sempre ratifica.
Um rato de preto
E um rato de branco
Um rato de frente
E um rato de flanco;
Um rato de púrpura
E um rato de cáqui
Um rato de feltro
E um rato de fraque;
Um rato de imprensa
Que tem que viver
É um rato que pensa
Um rato abstrato
Que rói por roer;
Um rato esquisito
Que vive em Paris
É um rato erudito
Um rato de giz;
E além desses ratos
Os ratos da terra
Que servem a outros ratos
Que não são da terra
Tem dona Ratona
E os rato-ratinhos
Tão engraçadinhos
Brincando de guerra
Rattus rattus rattus etc…

Soneto à Lua – Vinicius de Moraes

SONETO À LUA

Rio de Janeiro , 1938

Por que tens, por que tens olhos escuros
E mãos lânguidas, loucas e sem fim
Quem és, quem és tu, não eu, e estás em mim
Impuro, como o bem que está nos puros?

Que paixão fez-te os lábios tão maduros
Num rosto como o teu criança assim
Quem te criou tão boa para o ruim
E tão fatal para os meus versos duros?

Fugaz, com que direito tens-me presa
A alma que por ti soluça nua
E não és Tatiana e nem Teresa:

E és tampouco a mulher que anda na rua
Vagabunda, patética, indefesa
Ó minha branca e pequenina lua!

Rio, 1938

Sinos de Oxford – Vinicius de Moraes

SINOS DE OXFORD

Rio de Janeiro , 1946

Cantai, sinos, sinos
Cantai pelo ar
Que tão puros, nunca
Mais ireis cantar
Cantai leves, leves
E logo vibrantes
Cantai aos amantes
E aos que vão amar.

Levai vossos cantos
Às ondas do mar
E saudai as aves
Que vêm de arribar
Em bandos, em bandos
Sozinhas, do além
Oh, aves! ó sinos
Arribai também!

Sinos! dóceis, doces
Almas de sineiros
Brancos peregrinos
Do céu, companheiros
Indeléveis! rindo
Rindo sobre as águas
Do rio fugindo…
Consolai-me as mágoas!

Consolai-me as mágoas
Que não passam mais
Minhas pobres mágoas
De quem não tem paz.
Ter paz… tenho tudo
De bom e de bem…
Respondei-me, sinos:
A morte já vem?

Senhor, eu não sou digno – Vinicius de Moraes

SENHOR, EU NÃO SOU DIGNO

Rio de Janeiro , 1933

Para que cantarei nas montanhas sem eco
As minhas louvações?
A tristeza de não poder atingir o infinito
Embargará de lágrimas a minha voz.
Para que entoarei o salmo harmonioso
Se tenho na alma um de-profundis?
Minha voz jamais será clara como a voz das crianças
Minha voz tem as inflexões dos brados de martírio
Minha voz enrouqueceu no desespero…
Para que cantarei
Se em vez de belos cânticos serenos
A solidão escutará gemidos?
Antes ir. Ir pelas montanhas sem eco
Pelas montanhas sem caminho
Onde a voz fraca não irá.
Antes ir — e abafar as louvações no peito
Ir vazio de cantos pela vida
Ir pelas montanhas sem eco e sem caminho, pelo silêncio
Como o silêncio que caminha…

Mulher é poesia, palavra e amor .

“Mulher é poesia e é palavra

que ensina e vontade que não
acaba e é tempestade levada
e trazida vezes sem fim.

Mulher é misericórdia e é a
razão que nunca se perde e
é aquele pecado tão desejado
tão perdido, tão encontrado.

Mulher sente como nenhum
outro ser sente e ama de um
jeito próprio igual pétala
faz com sua inflorescência.

Mulher sente tudo e esquece
nada porque tudo reside no
coração que movimenta tudo
e o mundo e as pessoas.”

Soneto a Katherine Mansfield – Vinicius de Moraes

SONETO A KATHERINE MANSFIELD

Rio de Janeiro , 1938

O teu perfume, amada — em tuas cartas
Renasce, azul… — são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.

Relembro-as, vou… nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro; e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.

Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto!… e a primavera
Vem já tão próxima!… (Nunca te apartas

Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.

Redondilhas para Tati – Vinicius de Moraes

REDONDILHAS PARA TATI

Rio de Janeiro , 2004

Sem ti vivo triste e só
(Bastasse o que já sofri… )
Sem ti sou ermo, sou pó
Sou tristeza por aí…
Sem ti… ah, dizer-te a ti!
Mas se me cerra o gogó
Como se tivesse aqui
Um naco de pão-de-ló!
Sem ti sou pena de Jó
Sou ovo de juriti
Sem ti sou carandaí
Tamandaré, Mossoró
Sem ti sou um qüiproquó
Um oh, um charivari
Sem ti, sou de fazer dó
Sou de fazer dó-ré-mi
Meu benzinho de totó
Meu amor de tatuí.
Mas sou forte não reclamo
Sou bravo como Peri
– Não, mulher, já não te amo!
(É brincadeira, hem, Tati… )
Tati, Tatuca, Tatica
Onde ficou minha tática
Perdi toda a velha prática…
Esta vida é uma titica.
Ah, garota, francamente
Nem sei mais o que pensar
És tu que estás tão presente
Ou eu que fui me casar?
Não posso, Tati, te juro
Não posso viver sem ti
Tu és meu cantinho escuro
Meu verso por descobrir
És meu eterno oxalá
Em terra de alibibi
És meu trecho de Zola
Repassado por Delly
És Totonha, Tatiana
Tereza, e nunca Tati
És extrato de lavanda
Rotulado por Coty
Beatriz?… mas quem és tu
Para Dante abandonar?
Sereis um merci bocu
De praga de pai Exu
Para cima de moá?

Não! Tu és como o penedo
E eu… como a onda do mar
És a sombra do arvoredo
E eu… pastor a descansar
Sou o ouvido, és o segredo
És a luta, eu sou a paz
És Beatriz Azevedo
E eu Vinicius de Moraes.

Que hei de fazer de mim – Vinicius de Moraes

QUE HEI DE FAZER DE MIM,…

Rio de Janeiro , 2004

Que hei de fazer de mim, neste quarto sozinho
Apavorado, lancinado, corrompido
A solidão ardendo em meu corpo despido
E em volta apenas trevas e a imagem do carinho!

Defendido, a me encher como um rio contido
E eu só, e eu sempre só! ó miséria, ó pudor!
Vem, deita comigo, branco e rápido amor
Risca de estrelas cruéis meu céu perdido!

Lança uma virgem, se lança, sobre este quarto
Fá-la que monte no teu sórdido inimigo
E que o asfixie sob o seu púbis farto

Mas que prazer é o teu, pobre alma vazia
Que a um tempo ordenhas lágrimas contigo
E outras enxugas, fiéis lágrimas de agonia!

Clube do Gueto