Marina – Vinicius de Moraes

MARINA

Rio de Janeiro , 1946

Lembras-te das pescarias
Nas pedras das Três-Marias
Lembras-te, Marina?

Na navalha dos mariscos
Teus pés corriam ariscos
Valente menina!

Crescia na beira-luz
O papo dos baiacus
Que pescávamos

E nas vagas matutinas
Chupávamos tangerinas
E vagávamos…

Tinhas uns peitinhos duros
E teus beicinhos escuros
Flauteavam valsas

Valsas ilhoas! vadio
Eu procurava, no frio
De tuas calças

E te adorava; sentia
Teu cheiro a peixe, bebia
Teu bafo de sal

E quantas vezes, precoce
Em vão, pela tua posse
Não me saí mal…

Deixavas-me dessa luta
Uma adstringência de fruta
De suor, de alga

Mas sempre te libertavas
Com doidas dentadas bravas
Menina fidalga!

Foste minha companheira
Foste minha derradeira
Única aventura?

Que nas outras criaturas
Não vi mais meninas puras
Menina pura.

Madrigal – Vinicius de Moraes

MADRIGAL

Rio de Janeiro , 2004

Nem os ruídos do mar, nem os do céu, nem as modulações frescas
Da campina; nem os ermos da noite sussurrando sossegos na sombra, nem os cantos votivos da morte, nem as palavras de amor lentas, perdidas; nem as vozes, os músicos nem o eco patético das lamentações; nenhum som, nada
É como o doce, inefável ruído que meu ouvido ouve quando se pousa em carícia, ó minha amiga, sobre a carne tenra da tua barriguinha.

Lisboa tem terremoto… – Vinicius de Moraes

LISBOA TEM TERREMOTO…

Rio de Janeiro , 2004

Lisboa tem terremoto
Porém, em compensação
Tem muitas cores no céu
Muitos amores no chão
Tem, numa casa pequena
O poeta Alexandre O’Neill
E a bela Karla morena
Na embaixada do Brasil
Aymé! o mote repete
Lisboa tem terremoto
Mas tem o Nuno Calvet
Para lhe fazer cada foto!
É, eu sei – retruca o mote
Que não me deixa mentir
Lisboa tem terremoto
Não deve nada a Agadir
Mas, já que estamos nos sismos
Capazes de destruir
Tem o ator Nicolau Breynes
Pra gente morrer… de rir
Tem David, irmão de Jayme
E Jayme, irmão de David
Não fossem os Mourão Ferreira
E eu nunca estaria aqui.
Pois é, o mote reclama
Lisboa tem terremoto
Mas tem o fato da Alfama
Tem o sapato do Otto
(Sapato, claro, é maneira
Carinhosa de dizer
Pois fosse o Otto sapato
Eu também queria ser)
E o Otto tem sua Helena
E Helena, seu broto em flor
A nena Helena Cristina
(Ou Maria-Pão-de- Queijo)
De quem eu sou cantador.
Em matéria de Cristinas
Só temos saldo a favor!
Mas, alto! me grita o mote
Mote-mote, mote-moto
Deixe de tanto fricote
Lisboa tem terremoto!
E você? Parta-o um raio!
Terremoto… é natural
Mas e a Terezinha Amayo
E a Laurinha Soveral
E essa coisa pequenina
De quem todo mundo gosta
A sempre altiva menina
Que se chama Beatriz Costa?
E Amália, a grande, a divina
Que é de Portugal a voz
Ela também quando cisma
Não faz tremer todos nós?
E está tudo bem, meu velho
És de Lisboa um devoto
Mas pergunta do Antonio Aurélio
Que é arquiteto e tem teto
Lisboa tem terremoto!
Mas tem, em contrapartida
O Antônio […] da Câmara
Pra lhe contar outra história
Um bom amigo, que em vida
Soube conquistar a glória.
E a Glória tem Terezinha
E tem Wandinha que é um amor
Quem teve brotinhos assim
Não tem medo do tremor.
E tem o Raul Solnado
Que eu acho um senhor ator
Quem tem atores assim
Não tem medo de tremor.

– Lisboa tem terremoto
Geme o mote, ao expirar
– Faz figa! Faz figa, Otto!
Terremoto? Sai, azar!

Lembrete – Vinicius de Moraes

LEMBRETE

Rio de Janeiro , 2004

A nunca esquecer: as manhãs
Da infância, os pães alemães
A sala escura

Na casa da rua Voluntários
Da Pátria, lar de funcionários
Da prefeitura.

A nunca esquecer: minha avó
Prosternada (Deus e ela) só
Pele e ossos

A tatalar silêncio e paz
Nas consoantes labiais
Dos padre-nossos.

A nunca esquecer: a carne negra
O cheiro agreste, a pele íntegra
Nua na cama

Nas justaposições mais pródigas
Que menino não ama as nádegas
De sua ama?

A nunca esquecer: as gavetas
Velhas, à luz; as rendas pretas
As caixinhas

E as sublimes fotografadas
Mortas, mas ainda enamoradas
Ó tias minhas!

A nunca esquecer: certa mulher
Cuja face não posso mais ver
Em certo quarto

A mergulhar minha cabeça
Por entre a escuridão espessa
Do ventre farto.

A nunca esquecer: o caso Sacco
E Vanzetti nem Michel Zevaco
(Que o avô me deu!)

Que este seria o quixotismo
A arrebatar-me de ismo em ismo
A um: como o meu.

Memória

Amar o perdido

deixa confundido

este coração.

Nada pode o olvido 

contra o sem sentido

o apelo do não.

As coisas tangíveis

tornam-sr insensíveis

à palma da mão.

Mas as coisas findas,

muito mais que lindas, essas ficarão.

 

Este poema é lindo, fala sobre amar o que perdermos , e que não é necessário esquecer uma perda. As coisa que podiam ser tocadas com a mão , agora já não podem ser tocadas novamente . Por fim, as coisas mais lindas são as que ficam, pois estás se tornam memórias , as quais permanecem para sempre.

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O falso mendigo – Vinicius de Moraes

O FALSO MENDIGO

Rio de Janeiro , 1938

Minha mãe, manda comprar um quilo de papel almaço na venda
Quero fazer uma poesia.

Diz a Amélia para preparar um refresco bem gelado
E me trazer muito devagarinho.
Não corram, não falem, fechem todas as portas a chave
Quero fazer uma poesia.
Se me telefonarem, só estou para Maria
Se for o Ministro, só recebo amanhã
Se for um trote, me chama depressa
Tenho um tédio enorme da vida.
Diz a Amélia para procurar a “Patética” no rádio
Se houver um grande desastre vem logo contar
Se o aneurisma de dona Ângela arrebentar, me avisa
Tenho um tédio enorme da vida.
Liga para vovó Neném, pede a ela uma ideia bem inocente
Quero fazer uma grande poesia.
Quando meu pai chegar tragam-me logo os jornais da tarde
Se eu dormir, pelo amor de Deus, me acordem
Não quero perder nada na vida.
Fizeram bicos de rouxinol para o meu jantar?
Puseram no lugar meu cachimbo e meus poetas?
Tenho um tédio enorme da vida.
Minha mãe estou com vontade de chorar
Estou com taquicardia, me dá um remédio
Não, antes me deixa morrer, quero morrer, a vida
Já não me diz mais nada
Tenho horror da vida, quero fazer a maior poesia do mundo
Quero morrer imediatamente.
Fala com o Presidente para fecharem todos os cinemas
Não aguento mais ser censor.
Ah, pensa uma coisa, minha mãe, para distrair teu filho
Teu falso, teu miserável, teu sórdido filho
Que estala em força, sacrifício, violência, devotamento
Que podia britar pedra alegremente
Ser negociante cantando
Fazer advocacia com o sorriso exato
Se com isso não perdesse o que por fatalidade de amor
Sabe ser o melhor, o mais doce e o mais eterno da tua puríssima carícia.

O escravo – Vinicius de Moraes

O ESCRAVO

Rio de Janeiro , 1935

J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille ans. 
Baudelaire

A grande Morte que cada um traz em si.
Rilke

Quando a tarde veio o vento veio e eu segui levado como uma folha
E aos poucos fui desaparecendo na vegetação alta de antigos campos de batalha
Onde tudo era estranho e silencioso como um gemido.
Corri na sombra espessa longas horas e nada encontrava
Em torno de mim tudo era desespero de espadas estorcidas se desvencilhando
Eu abria caminho sufocado mas a massa me confundia e se apertava impedindo meus passos
E me prendia as mãos e me cegava os olhos apavorados.
Quis lutar pela minha vida e procurei romper a extensão em luta
Mas nesse momento tudo se virou contra mim e eu fui batido
Fui ficando nodoso e áspero e começou a escorrer resina do meu suor
E as folhas se enrolavam no meu corpo para me embalsamar.
Gritei, ergui os braços, mas eu já era outra vida que não a minha
E logo tudo foi hirto e magro em mim e longe uma estranha litania me fascinava.
Houve uma grande esperança nos meus olhos sem luz
Quis avançar sobre os tentáculos das raízes que eram meus pés
Mas o vale desceu e eu rolei pelo chão, vendo o céu, vendo o chão, vendo o céu, vendo o chão
Até que me perdi num grande país cheio de sombras altas se movendo…

Aqui é o misterioso reino dos ciprestes…
Aqui eu estou parado, preso à terra, escravo dos grandes príncipes loucos.
Aqui vejo coisas que mente humana jamais viu
Aqui sofro frio que corpo humano jamais sentiu.
É este o misterioso reino dos ciprestes
Que aprisionam os cravos lívidos e os lírios pálidos dos túmulos
E quietos se reverenciam gravemente como uma corte de almas mortas.
Meu ser vê, meus olhos sentem, minha alma escuta
A conversa do meu destino nos gestos lentos dos gigantes inconscientes
Cuja ira desfolha campos de rosas num sopro trêmulo…
Aqui estou eu pequenino como um musgo mas meu pavor é grande e não conhece luz
É um pavor que atravessa a distância de toda a minha vida.

É este o feudo da morte implacável…
Vede — reis, príncipes, duques, cortesãos, carrascos do grande país sem mulheres
São seus míseros servos a terra que me aprisionou nas suas entranhas
O vento que a seu mando entorna da boca dos lírios o orvalho que rega o seu solo
A noite que os aproxima no baile macabro das reverências fantásticas
E os mochos que entoam lúgubres cantochões ao tempo inacabado…
É aí que estou prisioneiro entre milhões de prisioneiros
Pequeno arbusto esgalhado que não dorme e que não vive
À espera da minha vez que virá sem objeto e sem distância.
É aí que estou acorrentado por mim mesmo à terra que sou eu mesmo
Pequeno ser imóvel a quem foi dado o desespero
Vendo passar a imensa noite que traz o vento no seu seio
Vendo passar o vento que entorna o orvalho que a aurora despeja na boca dos lírios
Vendo passar os lírios cujo destino é entornar o orvalho na poeira da terra que o vento espalha
Vendo passar a poeira da terra que o vento espalha e cujo destino é o meu, o meu destino
Pequeno arbusto parado, poeira da terra preso à poeira da terra, pobre escravo dos príncipes loucos.

Clube do Gueto