Azul e Branco – Vinicius de Moraes

AZUL E BRANCO

Rio de Janeiro , 1946

Concha e cavalo-marinho 
Mote de Pedro Nava

I

Massas geométricas
Em pautas de música
Plástica e silêncio

Do espaço criado.

Concha e cavalo-marinho.

O mar vos deu em corola
O céu vos imantou

Mas a luz refez o equilíbrio.

Concha e cavalo-marinho.

Vênus anadiômena
Multípede e alada
Os seios azuis
Dando leite à tarde
Viu-vos Eupalinos
No espelho convexo
Da gota que o orvalho
Escorreu da noite
Nos lábios da aurora.

Concha e cavalo-marinho.

Pálpebras cerradas
Ao poder violeta
Sombras projetadas
Em mansuetude
Sublime colóquio
Da forma com a eternidade.

Concha e cavalo-marinho.

II

Na verde espessura
Do fundo do mar
Nasce a arquitetura.

Da cal das conchas
Do sumo das algas
Da vida dos polvos
Sobre tentáculos
Do amor dos pólipos
Que estratifica abóbadas
Da ávida mucosa
Das rubras anêmonas
Que argamassa peixes
Da salgada célula
De estranha substância
Que dá peso ao mar.

Concha e cavalo-marinho.

Concha e cavalo-marinho:
Os ágeis sinuosos
Que o raio de luz
Cortando transforma
Em claves de sol
E o amor do infinito
Retifica em hastes
Antenas paralelas
Propícias à eterna
Incursão da música.

Concha e cavalo-marinho.

III

Azul… Azul…

Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco

Concha…
e cavalo-marinho.

Canção (Vinicius de Moraes)

CANÇÃO

Rio de Janeiro , 1946

Não leves nunca de mim
A filha que tu me deste
A doce, úmida, tranqüila
Filhinha que tu me deste
Deixe-a, que bem me persiga
Seu balbucio celeste.
Não leves; deixa-a comigo
Que bem me persiga, a fim
De que eu não queira comigo
A primogênita em mim
A fria, seca, encruada
Filha que a morte me deu
Que vive dessedentada
Do leite que não é seu
E que de noite me chama
Com a voz mais triste que há
E pra dizer que me ama
E pra chamar-me de pai.
Não deixes nunca partir
A filha que tu me deste
A fim de que eu não prefira
A outra, que é mais agreste
Mas que não parte de mim.

Barcarola (Vinicius de Moraes)

BARCAROLA

Rio de Janeiro , 1946

Parti-me, trágico, ao meio
De mim mesmo, na paixão.
A amiga mostrou-me o seio
Como uma consolação.

Dormi-lhe no peito frio
De um sono sem sonhos, mas
A carne no desvario
Da manhã, roubou-me a paz.

Fugi, temeroso ao gesto
Do seu receio modesto
E cálido; enfim, depois

Pensando a vida adiante
Vi o remorso distante
Desse crime de nós dois.

Barcarola (Vinicius de Moraes)

BARCAROLA

Rio de Janeiro , 1946

Parti-me, trágico, ao meio
De mim mesmo, na paixão.
A amiga mostrou-me o seio
Como uma consolação.

Dormi-lhe no peito frio
De um sono sem sonhos, mas
A carne no desvario
Da manhã, roubou-me a paz.

Fugi, temeroso ao gesto
Do seu receio modesto
E cálido; enfim, depois

Pensando a vida adiante
Vi o remorso distante
Desse crime de nós dois.

Amor (Vinicius de Moraes)

AMOR

Rio de Janeiro , 2004

Vamos brincar, amor? vamos jogar peteca
Vamos atrapalhar os outros, amor, vamos sair correndo
Vamos subir no elevador, vamos sofrer calmamente e sem precipitação?
Vamos sofrer, amor? males da alma, perigos
Dores de má fama íntimas como as chagas de Cristo
Vamos, amor? vamos tomar porre de absinto
Vamos tomar porre de coisa bem esquisita, vamos
Fingir que hoje é domingo, vamos ver
O afogado na praia, vamos correr atrás do batalhão?
Vamos, amor, tomar thé na Cavé com madame de Sevignée
Vamos roubar laranja, falar nome, vamos inventar
Vamos criar beijo novo, carinho novo, vamos visitar N. S. do Parto?
Vamos, amor? vamos nos persuadir imensamente dos acontecimentos
Vamos fazer neném dormir, botar ele no urinol
Vamos, amor?
Porque excessivamente grave é a Vida.

A Esposa – Vinícius de Moraes

A ESPOSA

Rio de Janeiro , 1933

Às vezes, nessas noites frias e enevoadas
Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e mansos
Essa estranha visão de mulher calma
Surgindo do vazio dos meus olhos parados
Vem espiar minha imobilidade.

E ela fica horas longas, horas silenciosas
Somente movendo os olhos serenos no meu rosto
Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele.
Nada diz, nada pensa, apenas olha — e o seu olhar é como a luz
De uma estrela velada pela bruma.
Nada diz. Olha apenas as minhas pálpebras que descem
Mas que não vencem o olhar perdido longe.
Nada pensa. Virá e agasalhará minhas mãos frias
Se sentir frias suas mãos.
Quando a porta ranger e a cabecinha de criança
Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo
Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios
Sorrindo de um sorriso misterioso
E se irá num passo leve
Após o beijo leve e roçagante…

Eu só verei a porta que se vai fechando brandamente…

Ela terá ido, a esposa amiga, a esposa que eu nunca terei.

A ausente – Vinícius de Moraes

A AUSENTE

Rio de Janeiro , 1954

Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à ideia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro…
Amiga, última doçura
A tranquilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar…
Clube do Gueto