Poema Esquisito – Adélia Prado

Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
Ninguém tem culpa.
Meu pai. Minha mãe descasaram seus fardos,
não existe mais modo
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão
Nasceu lá, pois quis um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.                                                                                                                                        Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim respondem
tenazes e duros,
Porque o zelo do espírito é sem meiguices,
Ôôôôi fia.

Orfandade – Adélia Prado

Meu Deus
me dá cinco anos.
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dá a negrinha Fia pra eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,                                                                                                                                                                            meu pai.

Clandestino – Mia Couto

Na penumbra da tarde,
o mundo morto,
a meu passo, despertava.
Não era o amor
que eu procurava.                                                                                                                                                      Buscava o amar.

Na casa em ruínas,
te despias
para que me deixasse cegar.

 

Voz transpirada,
suplicavas que te chamasse no escuro.
Em ti, porém,
eu amava
quem não tem nome.

 

Na casa arruinada
te amei e te perdi
como a ave que voa

Falta de Reza – Mia Couto

Por insuficiência de reza

Por falsidade de crença

Meu anjo me culpou

e vaticinou eterna penitência

 

Mas não ajoelho

nem peço desculpa

Não quero um Deus

Que vigie os vivos

e peça contas aos mortos

 

Um Deus amigo

que me chame por tu

e que espere por mim

para um copo de riso e abraços:

esse é o Deus que eu quero ter

 

Um Deus

que nem precise de existir

 

 

Balaio – Paulo Novaes

O ciclo

É a bola conduzida no pé do menino

É perceber que o rei não está em nossa barriga

Mas só na culpa da nossa fome.

 

É o lembrete de que juntos somos polvora

Que o mundo não gira só no nosso umbigo

É a fé na fera

Na coragem da mãe protegendo a cria

No diâmetro do balaio cheio

Fazendo a feira

Pra festa e pra farra

 

É a mesa farta

Infartando a miséria

E ainda que proíbam esperancice

Passei a imitar um redentor de sete anos a andar de bicicleta

Jogando sorriso na banguela

Descendo a ladeira da preguiça

 

E ainda que se comemorem os corpos tombados

Hei de achar mais rainha o ventre que abriga a vida

E ainda que ateiem fogo no pão e do circo restem migalhas

Desafio

Quem tocar meu pulso

E fechando os olhos

Não se confundir com o Maracanã lotado em dia de final

Com as ladeiras de Olinda em pleno carnaval

 

Lembre-se

Seu corpo, tua anarquia

Seu espírito um ato político

 

Lembre-se

Não existe fim, apenas novos começos

Não existe tropeço quando se alça voo

Vem

Esfera

É nossa pupila

Travestida de lua

 

 

Testamento da Mulher Suspensa – Mia Couto

Eis o que vos deixo:
um leve gosto
de renascer lembrada.

E um falso desejo de ser esquecida.

Que eu virei
buscar a espuma da onda
que ficou para sempre por quebrar.
Beleza não me bastou:
o que quis ser
foram cetins de fogo,
pétalas de cinza depois do abraço.

Nem flor invejei:
o que mais ilumina
vem de um oceano escuro.
Esperanças tive: todas naufragaram
ante cansaços e remorsos.
Procurei ilhas e mares:

só havia viagens,
travessias de água
nos olhos de quem amei.
Num mundo com remédios parcos
não clamei bravuras.

Injusto é viver
em perecível ser.

Menina,
aprendi a desenrolar tapetes
em rasos pátios voadores,
varandas maiores que o mundo
onde o tempo à nossa mão vinha beber.
Meus pequenos dedos
rasgaram céus,
mas o ensejo era largo:
em mim secaram
lembranças de um mar antigo.

Assim,
tudo o que sou
já fui
na criança que sonhou ser tudo.
Meus lutos, sem emenda, carrego:
viuvez de mulher
não vem de marido.

Vem do amor não mais sonhado.

Com a fragilidade de um riso
enfrentei ruínas e derrotas
e apenas a vida, calada, me calou

 

Tudo falei com meus amantes.
Perante o amor, porém, não tive palavra.
O que da vida me restou:
pegadas alheias sob meus pés molhados.
Viver sabe quem ainda vai viver.


Deixo-me,
mulher que quase foi,
à mulher que nunca fui.

O Dia Surge da Água – Carlos Drummond de Andrade

O chafariz da Aurora
faz nascer o sol.
A água é toda ouro
desse nome louro.

O chafariz da Aurora,
na iridescência trêmula,
bem mais que um tesouro,
é prisma sonoro,
campainha abafada
em tliz cliz de espuma,
aérea pancada
súbita
na pedra lisa,
frígida espadana,
tece musicalmente
a áurea nívea rósea
vestimenta do dia líquido.

Deixa fluir a aurora,
sendo um tão pobre
chafariz do povo.

Insônia – Marcio Jung

Já é meia noite
E eu ainda não tenho sono,
Os ponteiros do relógio
Movem-se lentamente.

Meus cabelos embranquecem
Enquanto a madrugada transcorre,
O silêncio é total.
Não há mais nada
De interessante para fazer.

Estou enfadado
De tanto olhar para as paredes.
Preciso movimentar-me
Balançar os ossos,
Isso deixa-nos loucos,
Acordar no meio da noite
E não ter nada para fazer.

Contudo muita coisa
Pode-se aprender prestando
Atenção ao silêncio da madrugada.

Clube do Gueto