“Hoje ele estava diferente. Caminhava impaciente pelo quarto. A mão às vezes ia na cabeça. Começou depois que abriu sua caixa. Ninguém podia abrir as caixas. Somente eles, que, provavelmente, já estavam chegando. Por algum motivo, essa infração era a única silenciosa. Os alarmes não soavam. Quando se aproximou da janela, olhou para cima e a angústia esculpida em seu rosto foi iluminada. Sua boca mexeu; se algum som foi produzido por aqueles movimentos, jamais será possível saber. Entretanto, as palavras performadas pelos lábios diziam “Quem sou eu?”. Vultos negros surgiram em suas costas e o levaram. Em um piscar, ele foi. O apartamento em frente estava vazio.
Mantive meus olhos na fresta da janela por mais alguns instantes. Era inútil. Eles não o trariam de volta hoje. Sentei no chão com as costas apoiadas na parede. “Quem sou eu?”, a pergunta ressoou em minha mente. Quis chorar. Não havia ninguém para observar, estava sozinha de novo. Porém, algo mais me corroía. A angústia no rosto do homem, ao vê-la na luz, também era meu tormento. Senti como se o conhecesse. Senti meu rosto se contorcer, talvez espelhando a face na janela.
Uma palavra definia essa sensação. Fugiu-me da memória qual. Fui até a estante e procurei nos livros. Nos primeiros, nada condizia com a situação. Continuei procurando até que um pedaço de papel caiu. Estava escrito “empatia”. Reconheci a letra, era minha. No entanto, não escrevi nada daquilo. Continuei vasculhando, e outros bilhetes caiam no chão. Não. Abra. A caixa. Um frio tomou conta do meu corpo e assisti meus braços recolhendo os papéis e escondendo-os. Corri para a sala e encarei o aparelho televisivo. Uma doce calma deitou sobre minha consciência e pude deixar aqueles sentimentos de lado.
À noite, conectei o cabo da caixa na minha nuca para fazer o relatório diário. Contei para ela o que havia ocorrido naquela manhã quando o homem foi levado. Entretanto, enquanto falava dos bilhetes, fui tomada por um horror ao dizer a palavra “não”. O que completava essa frase era uma infração. Hesitei. Essa pausa os deixaria alarmados. Meu nome estaria na lista de advertência. Por outro lado, se eu contasse aquilo, talvez eles viriam imediatamente para me levar, como feito com o vizinho. Na dúvida, hesitar não era uma infração. Ainda. Retomei a fala com cuidado, omitindo os outros bilhetes. A caixa percebeu meu desconforto.
Acordei com o aparelho televisivo ligado. O Sol entrava pelas frestas da janela. Fiz um esforço para ir até lá e observar. O apartamento em frente estava vazio. Isso era estranho. Deveria ter alguém naquele quarto. Não recordava se ontem, ou algum outro dia, aquele apartamento havia sido ocupado. Mas deveria ter alguém lá. Disso eu tinha certeza. Chorei, tentando conter gritos que batiam enfurecidos na garganta. Enlouqueci? Por que chorava? Palavras embaralhadas surgiram nos meus pensamentos e aos poucos se ordenavam. “… abra a caixa” diziam.
Eu mesma sussurrava “… abra a caixa”. O quarto tornou-se grande demais e o meu coração pesava. Parecia um buraco no peito. Fui incapaz de compreender. Assisti a mim como ao aparelho televisivo, longe daquela pessoa aos prantos. Não me reconhecia. Aquilo, envolto de sentimentos tão estranhos, arrastado por correntezas selvagens, não era eu. Então… quem sou eu?
O guarda-roupa já estava entreaberto, minhas mãos percorreram a superfície da caixa. Elas pararam. Tremiam. Meu coração pulsava. Os músculos se moviam de forma autônoma, nada nem ninguém poderia impedir. Os dedos pressionaram as travas, um estalo e um leve apito. Dentro da caixa, no centro, uma bola negra conectada aos aparatos. Percebi meus ombros rígidos quando tentei removê-la. Eu estava condenada.
Encarei o objeto escuro na minha mão e ele reluziu suave. Imediatamente o soltei. A minha mente foi inundada com imagens, vozes e momentos fora desse pequeno apartamento. Rostos, animais, fogo. Corpos, gritos, lágrimas. Tentei focar em algo, tentei, doía, tentei, tentei… Uma mulher olhava para mim bem perto. Minha mãe! Como pude esquecê-la? “O que foi, meu anjinho?” Quis abraçá-la, beijá-la. “Senti tanto a sua falta” balbuciei, embora não houvesse som. Os olhos dela se fecharam e seu rosto foi coberto por flores em um caixão. Eu chorava. Nem consegui dizer nada, nem eu te amo, nem… confessar que quebrei o vaso dourado da sala.
Alguém me abraçou, um cheiro forte invadiu meu nariz. Reconheci meu pai. “Sinto muito, querida. Meus pêsames”. Fiquei enfurecida. Tantos anos distante, mal o conheci de verdade. Desculpas? Era tarde demais. A consciência pesou por encarar a fria realidade, a vida é frágil. Não, não o perdoo. No fundo, nem mesmo ele quer meu perdão. Somente quer acreditar que, com o mísero de esforço, buscou consertar tudo entre nós. Não, não.
O sino da igreja tocou e a marcha nupcial deu início. Meu irmão mais velho me levava ao altar. Caminhávamos pelo tapete. Meu irmão… Com certeza a pessoa mais louca que já conheci. Tentou me ensinar dirigir escondido de nossa mãe. Bati o carro e ele assumiu a culpa. Gostava de voar. Sua maior loucura foi viajar o mundo. Infelizmente, tudo começou, ou melhor, tudo terminou e nunca mais o vi.
O homem que me esperava no altar era… o mesmo homem que espiei pela janela, o estranho vizinho do apartamento em frente. Eu o amava. Ele sorriu, retribuí. Quase esqueci o inferno que passamos depois daquilo. Mudamos bastante. Principalmente depois do primeiro assassinato. Embora a sala estivesse mal iluminada, era possível ver o sangue espirrado em seu rosto e os corpos no chão. Ele olhava para mim transtornado e sombrio. “Apenas nos defendemos” eu disse chorando.
As ruas estavam um caos, nenhum lugar era seguro. Muitos haviam enlouquecido ao saberem sobre o fim… O fim do mundo. Depois que a luz púrpura brilhou no céu e a primeira pessoa morreu, iniciando a corrente mortífera, não seria possível voltar atrás. Nada mais seria como antes.
Até que eles nos acharam. “Podemos apagar todas as memórias que tragam sofrimento. Mas só as que vocês permitirem. Não, não se preocupe. Quando tudo isso terminar, suas memórias serão restauradas” disse o homem mais alto. Eu só queria esquecer todos aqueles horrores. Desde então, não chorei. Nem sorri. Todas os dias e noites nesse apartamento, apagando toda e qualquer emoção ruim. No começo, foi bom, porém, agora sequer lembrava meu nome… Almerinda.
Quem sou eu agora? Sem lembranças, perdi tudo. Não sou mais aquela menina que conheceu sua melhor amiga fugindo de um cachorro, ou que ganhou a boneca dos sonhos de seu avô. Nem aquela garota debutante que deu seu primeiro beijo. Nem a mulher que perdeu uma vida e que também tirou várias outras. Nem a vigilante que escreveu o bilhete “Não abra a caixa”. Quem sou eu? Almerinda? Ninguém.
Os homens de preto pegaram a caixa e me arrastaram para fora de casa. Silenciaram meus gritos, entretanto, não meus pensamentos. Ardiam. Giravam. Com a visão embaçada pelas lágrimas, vi o céu azul, o verde. Ouvi os pássaros, senti a brisa cálida. O mundo não parecia mais hostil, nem mesmo púrpura. Quantos anos haviam passado? Minha cabeça… Talvez eu já estive aqui fora, nesse mundo restaurado. Minhas mãos… Sangue! Havia muito sangue. Não agora. Eu queria dormir, esquecer toda essa angústia. Eu podia sentir os prédios me observando, tinham olhos aterrorizados em mim. Será que todos perdemos a sanidade? Será que todos nós da ala oeste estamos incapacitados de reintegrar a sociedade com nossas memórias? Ou… sem elas? Transportavam-me em um automóvel escuro. Meus olhos pesavam. Quem sou eu?
Acordei com o barulho do aparelho televisivo. Senti um hematoma em meu braço. Eu realmente era desastrada, bati em algum lugar. Levantei e olhei a fresta da janela. O homem ainda dormia em sua cama. Mas percebi que outros vizinhos estavam um pouco agitados. Pairava no ar um sentimento ardoso e sombrio. Ouvi passos suaves atravessando os corredores externos. Bem, os alarmes não soaram. Isso significa que alguém abriu a caixa, a única infração silenciosa. Preciso anotar isso em algum lugar para não esquecer e cometer o mesmo erro.”
Autor: Gustavo Moura
Encontrado no Google em Escambau.