TEXTOS DESCONHECIDOS: Vestindo o Alzheimer

“Antenor já entardecia o sossego quando sua esposa, dona Ermelinda, lhe pedira para caçar dentre as gavetas aquele pano amarelo encardido, que mais parecia um vestido mal passado. Ele sabia de qual se tratava, mas vasculhava, agora, laço por laço, remendo por remendo, no íntimo daquele guarda-roupa de portas também laçadas, também remendadas, a oportunidade de encontrar por aqueles terrenos um tesouro esquecido.

Esquecido, pois já calculava-se o terceiro lapso de memória desde que adentrara naquele mundo homogêneo e inclassificável que ficava bem ali, no guarda-roupa de quem gritava: ‘’achou?’’ – e tinha como resposta: ‘’sim, mas não foi bem desse jeito que sonhei’’, mas dona Ermelinda, acostumada com os retornos desconexos, apenas aceitava, mais uma vez, respeitando o tempo – talvez infindável – de reação do seu marido.

Ouvira, então, os cabides, que algo não estava certo. As roupas, por sua vez, eram surradas pela bengala já abalada pelos desequilíbrios de quem a carregava. No entanto, Antenor prosseguia: ‘’está escrito: Os velhos sonharão sonhos. Eu sonhei! Hei de enriquecer até fim da… E-Ermelinda! O que é que você queria?’’ e, somando mais um vazio no diálogo cotidiano, descansava, pois, no dedilhar de uma pequena caixa cor de mel que encontrara na esquina da terceira gaveta à esquerda. Era perfeitamente quadrada e singela em suas customizações.

– Achei! – gritou à esposa, que esperava ansiosa pelo vestido amarelo encardido.
Fosse isso o que procurasse ou não, as pequenas joias e o bordado que compunham a superfície lhe entretiam o suficiente para que não percebesse, até, que era o único item preservado que poderia ser encontrado não só no interior daquelas portas de madeira, como também no quarto, como também na casa, como também nos corpos que ali moravam.

Deslizava, então, pelas mãos do senhor já próximo da quarta idade, se é que no momento lhe afrontariam as classificações, a tampa da caixa, revelando a ele uma das maiores riquezas que poderia experimentar naquela tarde.

Nesse momento, abrindo-a, sentiu o sabor da lembrança e sentou na cama com os olhos marejados pelos iniciais vestígios de seu retorno. Ele estava prestes a chamar a esposa para vir comemorar, até que vem a sua frente o rosto agora amargo de sua primeira namorada – e noiva – como fez questão de lembrar.

O mesmo aconteceu com a segunda e a terceira, o que, todavia, lhe permitira gritar Ermelinda para participar, pois as lembranças não faziam esquecer – espantosamente – o amor cultivado, dia após dia, pela sua – ‘’Maldita!’’ – esposa. 
Antenor fechou rapidamente a caixa, enquanto resmungava pela segunda vez – ‘’Maldita!!’’ – o azar de quem teve a sorte de ser criado pela madrasta.  ‘’Bem lembrado!’’ – Ele dizia, ao mesmo tempo em que lhe descia pela garganta o preço das recordações. Sua infância amadurecia à medida que a vivia de novo.

E cada fragmento remoía a Arnaldo um gosto diferente. Algumas lhe acariciavam o ego, há pouco santificado pela velhice, no mesmo instante em que outras lhe castigavam.

Assim, as mãos embrulhadas pela pele terminavam de fechar as laterais do bauzinho conservado, que deveria ser ainda mais querido, ainda mais zelado. E no que ia guardando-o em seu devido lugar, na esquina da primeira gaveta à direita, caiu ao pé da cama e ali ficou, esparramado no ápice dos desmazelos. Sem perceber, Arnaldo corria, no passo da bengala, a fim de contar à esposa as novidades do passado.

Ela, porém, em desencontro ao marido, apanha, temerosa, a caixa cor de mel de pílulas para memória esquecidas no chão do quarto, as quais ele nunca lembrava de tomar.

– Arnaldo! E o vestido?

Então ouve a resposta, distante:

– Ah, querida, nunca me esquecerei. Você era a noiva mais linda!”

Autora: Luísa Coutinho

Encontrado no Google em Escambau.

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